terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Lostras, sostras e ostras

Lamparinas bem dadas
Quando, no meio da discussão e dos encontrões, lhe ofereceram um par de lamparinas, ele aceitou de bom grado e até aproveitou para deitar abaixo a ligação à EDP.

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as lostras e as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras", "as lostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tentai lá pronunciá-las, uma e depois a outra e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Comecei naturalmente pelas lostras, ou não fosse eu filho da minha mãe, que nos chegava a roupa ao pêlo com assinalável pertinácia. Bufardos, sopapos, bofetadas, bofetões, galhetas, lamparinas, estampilhas, lostras para todos os efeitos, aprendi isso tudo à minha custa, mesmo antes de entrar para a escola, que em nossa casa era uma fartura pelo menos nesse departamento e eu era muito bom para sinónimos.
Sostras, eu também sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia dessa estranha ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Orlando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, isto é, no Sud Expresso, e tivemos todos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, nem mais nem menos, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, dividindo praça com os tremoços da Marrequinha e as castanhas assadas da Maria Barraca, consoante a época. Foi logo ali, no estrangeiro, que eu percebi pela primeira vez a inegável superioridade moral das nossas sardinhas e a sorte que tenho por ter nascido em Fafe naquele tempo e, ainda por cima, no Santo Velho.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Uma feira que era três, talvez quatro

O homem-crocodilo
Despedido pela Lacoste, o homem-crocodilo fez-se à vida e foi com a mulher vender nas feiras. Mas bastante contrafeito.

A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro para as compras.
Era. A feira de Fafe era três, talvez quatro. Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como fazia questão de apresentar-se. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro, sem filhos e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiadas em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
A Feira das Galinhas funcionou também, transitoriamente, no Largo Ferreira de Melo, entre os sanitários do Jardim do Calvário e as traseiras com laguinho do posto da Polícia de Viação e Trânsito. E, lembro-me agora, chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...

O meu pai foi dado à troca

Tristeza mole
A tristeza, é o que tem, só dói enquanto dura.

O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no Pai Natal, embora que o há há, ou que o ho ho! O Menino Jesus, sim, diz-me respeito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, tu-cá-tu-lá um com o outro, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava todos os anos, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera, em França, provavelmente para nos doer menos, um pelo outro, e doeu ainda mais, que eu só tinha onze anos. Em França é onde nascem os meninos, e ainda hoje acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca.