domingo, 30 de novembro de 2025

O verdadeiro Artista

O andar de John Wayne
O que ele queria mesmo era ter um andar como o do John Wayne. Aquele andar, estais a ver? O andar inteiro. Doze quartos, duas cozinhas, piscina com escorrega e, evidentemente, marquise.

Vem aí o Dia do Artista e eu não sei dele. Não sei do Artista, quero dizer. O Artista é de Fafe, do meu tempo, morava no Picotalho, à beira da velha casa do Sr. Armindo Bristol e do Carlos Frangueiro, andou comigo na escola, o Carlos também, o Artista é portanto rapaz da nossa idade. O Artista era Artista porque se identificava com os artistas da televisão e do cinema, dos livrinhos de cobóis, e estava bem visto, porque os artistas eram os galãs, os protagonistas, os que levavam a rapariga, os que nunca morriam, apenas desapareciam em direcção ao sol poente. Por isso, antes de começar a brincadeira, o Artista avisava logo, sem dar vez a mais ninguém: "eu é que sou o Artista". Uns diziam que eram Eusébio, outros que eram Adrião, o do hóquei em patins, uns diziam que eram Zorro, outros que eram Daniel Boone. O Carlos, apesar de Frangueiro, nome posto, até se safava como guarda-redes. O Artista era o Artista, e estava tudo dito.
Por razões talvez profissionais, o Artista gostava de frequentar a sala de bilhares do Café Império em vez do Peludo, ao contrário de nós todos, vestia sempre com grande categoria e tinha um andar estudado e falar nervoso, foi trabalhar para o Porto há quase cinquenta anos, depois disso encontrámo-nos em meia dúzia de fortuitas ocasiões, curiosamente sempre em Fafe, creio que por alturas de Natal, ele cada vez mais impecável, parecia um lorde, invariavelmente apressado, e a seguir perdi-lhe o rasto, nunca mais o vi. Alguém me sabe dizer o que é feito do Artista?

À espanhola, mas sem castanholas

As barbas de molho
Até que um dia, de tanto ouvir falar naquilo, ele pôs as barbas de molho. Mas nunca soube para quê. Se ainda fosse bacalhau! Ou, vá lá, pelo menos uns tremoços...

Antes que o mundo acabe, faço questão de esclarecer o seguinte: bacalhau à espanhola não é caldeirada de bacalhau, tampouco ensopado de bacalhau. Ide a Fafe a aprendei: bacalhau à espanhola é um prato que pede azeite e não água. Perguntai aos antigos. É quase um guisado, de molho grosso e aveludado, e com o tempero apurado até aos limites legais de sal, pimenta, alho, louro e salsa. Por mim, também malagueta. Colorau, um nada só para dar cor, mais dourada do que vermelha. E, tomai nota, o pimento e o tomate são duas desnecessidades usadas apenas por quem pensa, mas não sabe, que só assim é que é "à espanhola". Erro crasso. O bacalhau à espanhola é à portuguesa! É à moda de Fafe, como era feito em todos os lares, ricos, pobres ou entremeados, pensões, tascos e saudosas casas de pasto da minha terra. Depois chegaram os restaurantes. E os snack-bars. E as tascas. E escangalharam tudo...

(Falo em fim do mundo e falo a sério, e não em cuecas, porque isto aqui não está para brincadeiras, um destes dias acordamos e está tudo morto, peço desculpa por ser tão cru. Entre solstícios e eclipses, luas de sangue, apagões, meteoros, asteróides, cometas e sextas-feiras 13, terramotos e terroristas, Elon Musk, Donald Trump e Vladimir Putin, claques de futebol, Montenegro, Ventura e rusgas policiais, basta uma corrente de ar, coisinha de nada, um arzinho que lhe deu, e a casa vem abaixo, quer-se dizer, já não há mais bacalhau para ninguém. O que é pena, porque, sejamos honestos e reconhecidos, o bacalhau é o melhor amigo do homem, só lhe falta ladrar, e, se tivéssemos mais um bocadinho de tempo, de mundo, vamos dizer assim, se calhar o bacalhau... au... au... ainda lá chegava.)

De volta ao tacho, ao nosso bacalhau à espanhola. O bacalhau até pode ser de quarto, daquele que, inteiro, não mede mais do que um palmo, e pode ser pouco, praticamente espinhas. Não faz diferença nenhuma. O importante é o gosto que o bacalhau empresta, o equilíbrio do tempero geral, a consistência da molhanga. Quando eu era pequeno e os tempos eram de mais pobreza do que agora, a minha mãe fazia um bacalhau à espanhola a que, honestamente, chamava batatas à espanhola. E vós não fazeis ideia do que perdestes por nunca terdes provado as batatas à espanhola da minha mãe...
E pronto, era isto. O mundo já pode acabar. Estou preparado, enfim de consciência tranquila. Andava com esta espinha atravessada na garganta, mas está o assunto resolvido. E agora, se me dais licença, vou à cozinha salgar uns ossinhos da suã para o almoço de terça-feira.

sábado, 29 de novembro de 2025

Grande momento de televisão

Pedimos desculpa por esta interrupção
Às vezes pergunto-me como seria o mundo sem televisão. E acho que provavelmente seria um bocadinho melhor.

Uma vez à noite, na TVI, Janeiro de 2012, como se fosse ontem. Marcelo Rebelo de Sousa pregava aos peixes, na sua habitual homilia dominical. Ele era ainda apenas comentador ou, vá lá, pitoniso oficial do regime. Falava da troika e de Cavaco Silva, que lhe estava a aquecer o lugar, de Pedro Passos Coelho e de António José Seguro, que então existiam, da UGT e da CGTP, da Grécia e da Alemanha, do Benfica e do Sporting, de carecas e de cabeludos, da fome e da fartura, de tudo e de nada. O costume. Como hoje em dia. De repente, lá atrás no cenário da redacção vazia, passa a dona Alice das limpezas, de aspirador pela trela, logo seguida pela dona Amélia, com um caixote de lixo na mão, e da dona Matilde, que não resiste e acaricia com o pano do pó o tampo de uma das mesas de trabalho por assim dizer. Grande momento de televisão! Esqueci-me da arenga do Professor (na verdade os seus comentários nunca me interessaram realmente), e concentrei-me no desfile em fundo. Fiquei cliente do programa de variedades, mas infelizmente elas nunca mais apareceram...

Deus falava às quartas-feiras

O pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

O sítio da Bíblia, em Fafe, era em Cima da Arcada, às quartas-feiras, entre o homem da banha de cobra e o triciclo motorizado com as mezinhas e os milagres da santa Alexandrina de Balasar, tudo muito bem documentado. Ficava-me no caminho para a escola. Em certas ocasiões também por lá constava o Rei das Limas, que usava um capacete colonial e tinha lábia de encantador de serpentes. A Bíblia apresentava-se nuns grandes desenhos muito coloridos e muito bonitos, montados num cavalete de madeira, e eu tinha-lhes muita devoção porque me pareciam cartazes de cinema, cenas de filmes de gladiadores e pirâmides, e o cinema, naquela altura, era a minha verdadeira religião. Eu creio que foi assim que despontou a minha "vocação" sacerdotal, a minha irreprimível vontade de ir para padre.
Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa e chamativa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete, Júlio Verne não o faria melhor. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir ao centro da terra ou ao fundo do mar, à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira do Rei ou Pedraído...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas, isso. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente. - Não estou aqui para enganar ninguém!...
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspectos.
Era. Deus falava às quartas-feiras. Em Fafe. Entre a banha da cobra e o Rei das Limas. Na feira. A Bíblia contada aos simples, vendida a retalho, em folhetins.
No seminário, nos silenciosos dias de retiro, era mesmo desta parte que eu gostava mais. No grande salão de estudo, estores corridos, luzes apagadas, o tripé com cartazes substituído pelo projector de slides, o vozeirão do narrador saindo de um enorme gravador de bobinas com colunas como se fosse do céu, uma ou outra sacramental dessincronização e banda sonora de Vivaldi e Beethoven, o que certamente seria do particular agrado do incontornável padre Coutinho, que tinha tanto de melómano como de pide. As palestras cheias de aventuras do padre Fernando Leite, da revista Cruzada e do jornal Clarim, compunham-me a alma, é verdade, quase tanto como ler "O Meu Cristo Partido", de Ramón Cué, ou ouvir Ruy de Carvalho a dizer "Desiderata", mas, confesso, a Bíblia assim contada à moda das Testemunhas de Jeová, cataclísmica como na feira de Fafe e ainda por cima em versão eléctrica, isso é que era a minha cena. 
Ah! A Bíblia! Eu adorava a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. E ainda estou para perceber como é que nunca cheguei atrasado à escola por causa da banha da cobra e porque é que me mandaram embora do seminário...

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Diálogos fafenses 40

Para bom entendedor
- Então já soubeste do gajo...
- Oh!, pá...
- O gajo...
- É sempre o mesmo...
- Diz-me ele...
- Tem a mania...
- Mas eu...
- Fizeste bem...
- Sabes como é que eu sou...
- És...
- Ele ainda começou...
- Mas tu...
- Havias de ter visto...
- Faço ideia...
- Um gajo tem...
- A quem o dizes...
- Gostei de falar contigo.
- Ainda bem que resolveste o assunto.
- Qual assunto?
- O teu assunto com o gajo.
- Qual gajo?
- Oh!, pá...

O Menino Jesus morreu sozinho

E se o Natal for mentira?
Era uma vez a notícia: "Idoso morreu sozinho em casa com hipotermia. Morreu Fulano de Tal, 68 anos, deficiente motor, residente em Pombal, Alfândega da Fé, que há vários meses vinha pedindo a institucionalização num lar de idosos. Perdeu a vida, na sexta-feira, após ter dado entrada no hospital em situação de hipotermia."

O Menino Jesus morreu. Tinha 84 anos e era o mês de Maio de 2012. O corpo do indivíduo do sexo masculino foi encontrado por acaso, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolvera fechar-se ninguém soube dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem do vocabulário e da gramática que lhes deram, suspeitam que o óbito terá ocorrido pelo menos cinco dias antes da macabra descoberta. Azar do caraças: dois dias a mais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estais a ver? Estais a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos como agora se usam, mas eram à boca-de-sino? O senhor que apanhava o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa do Porto? Estais a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Parecia-me uma figura de Fafe, um dos meus cromos antigos. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas pequeninas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, durante mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, em Nevogilde, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passava lá quase todos os dias, por deveres ou opções que não vêm aqui ao caso. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo e melhorado muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu no mês de Maio de 2012 e continua a morrer por aí. O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho, sem uma mão dada, uma palavra mansa ao ouvido, um céu com estrelas para olhar. Já basta o que basta: morrer, ainda que de velho, já deve ser fodido que chegue, regra geral. E confesso que não sei se o Menino Jesus tinha precisamente 84 anos, foi o que me constou. Os jornais do dia seguinte talvez tivessem dado a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas, breves. Ou então morreu apenas mais um octogenário, em contramão com a vida.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Doentinhos, graças a Deus!

O Homem-Prazol
Os super-heróis. Fui apreciador, confesso. Em miúdo, à pala da televisão do Peludo, das borlas no Cinema ou dos livrinhos de cobóis levados à troca no quiosque do postigo por Baixo da Arcada, já disse. O homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem que é homem, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina, o homem dos sete instrumentos e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, é verdade. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, hoje em dia sou mais dado ao homem-prazol.

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou, aos de nossa casa. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar. A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, nós, os Bombas, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, decilitrador pertinaz que, porém, nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo contrário, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro, sem olhar a quem. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega talvez centenário que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de vinte anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe liga nenhuma nem sequer lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também.
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas e uma vida no aparelho da pedra.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Não dou uma para a caixa. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus queridos avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania. Deus os tenha.

O papel e o papelão

O (des)interesseiro
- Eu quero é que o dinheiro se foda! - dizia. Acrescentando: - E que procrie, evidentemente...

O gestor de projectos instalou-se em Fafe, vindo ninguém sabe donde, e foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de cartão canelado e pós de perlimpimpim, exactamente no sítio onde fora outrora a velha Fábrica do Papelão, no rio Ferro, em Cavadas, a seguir ao extinto monte de Castelhão, entre as pontes de Ranha e de São José, investimento para cima de diversos milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez 24 ou 25, ainda não sabia ao certo, isto tudo, bem entendido, antes da chegada em barda das grandes superfícies, que entretanto tomaram conta do lugar. O senhor do banco pediu-lhe a identificação de gestor de projectos, e o gestor de projectos respondeu prontamente: "Não tenho. Ainda estou a começar. Este é o meu primeiro negócio, mas toco muito bem ocarina". O senhor do banco tomou devida nota e observou, arguto e rindo: "Fábrica de cartão canelado, nesta altura do ano? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro que aqui se pratica. Em todo o caso, se eu fosse mesmo vigarista, e dos antigos, como vosselência fez questão de caracterizar, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco e não uma fábrica", ripostou o gestor de projectos, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Sushi à moda de Fafe

As voltas e o ponto
O meu bacalhau vem para casa seco e inteiro. Eu é que o corto, eu é que o demolho. Eu é que lhe dou as voltas todas, eu é que lhe sei o ponto.

Fazei o obséquio de tomar nota! Sob o generoso fio corrente de água fria da torneira, desfiar meticulosamente uma boa posta de bacalhau da peça, sem pele e sem espinhas. Passar os fiapos do bacalhau por mais uma, duas ou três águas, sempre frias, agitando-o, ao bacalhau, e espremendo-o, até que fique no ponto de sal. Regar com azeite do melhor e três ou quatro pingas de vinagre, cobrir e misturar com cebola cortada às rodelas bem fininhas, picar um quase nada de alho, salpicar ao de leve com pimenta branca e enfeitar com azeitonas pretas. Está pronto! Sushi de bacalhau à moda de Fafe - inesperado, inovador e chique. Os antigos chamam-lhe punheta.

Ser pobre é uma chatice

A fome, por uma boa razão
Só, desempregado e sem casa, não comia regularmente. Passava fome. Mas tinha vergonha de admitir a pobreza. Dizia que era de propósito, opção, livre vontade. Que desconfiava da segurança dos alimentos...

Ser pobre é lixado. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, vaga ideia, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O respeitável jornal Público anunciava, no tempo da troika: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vede bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século XXI, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles, culpa deles, fossem para a Universidade, aprendessem Inglês. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é deveras dada a promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974. E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim acontecia na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Pôr um  carimbo vitalício na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado pudesse saber imediata e inequivocamente quem podia ou não comer a sopa, teria sido talvez uma melhor ideia, mas a verdade é que a coisa não foi por aí.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974, repito, que de verdade existiu e era preciso - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa, não sei se me faço entender.

Para quem não sabe ou não se lembra. No casarão onde era servida a sopa às crianças pobres da escola de Fafe, em condições sem condições nenhumas, funcionaram também, que me lembre e não sei se coincidindo, a Câmara Municipal, o centro de saúde e os serviços municipalizados de água e electricidade. Fui lá uma vez, à sopa, para ver como era. E não gostei.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Papando uns e outros

Fruta da época
Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri.

Chegava o Natal e ele, entre bombons e bumbuns, levava tudo a eito e sem destrinça. Padecia de uma espécie muito avançada de paronímia, segundo atestado médico, e a mulher, que era das antigas, desculpava-o, coitadinha...

Quando o homem-estátua abriu a boca

As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas da fama não se livram...

Porto, vésperas de mais um Natal. Ao fim de 35 anos de inabalável serviço na ex-libríssima Praça da Liberdade, o homem-estátua chamou o fiscal da Câmara num pst! muito bem disfarçado. Veio também um polícia municipal. "Ó colegas, isto aqui já não dá nada. Até o cavalo de D. Pedro IV leva mais do que eu ao fim do dia. Estou no ir, se calhar para Fafe, vou fazer de pedregulho no Largo ou talvez de árvore. Ou então vou para a Suíça trabalhar como boneco de neve ou vaca da Milka, que estamos na época. Lembrais-vos do Dr. Miguel Relvas? Sabíeis que sempre que os portugueses emigram têm uma visão universalista que lhes traz sucesso?", disse o homem-estátua ao fiscal camarário e ao polícia municipal, por entre dentes e sem perder a pose. Era efectivamente um homem-estátua aprumado, muito profissional e filósofo amiúde. "Além disso, estou farto de que me caguem em cima", acrescentou, descendo finalmente do banco de cozinha e arrumando os tarecos e o velho reumatismo em dois sacos plásticos do Pingo Doce do tempo em que os sacos plásticos eram de borla. "As pombas?", perguntou o fiscal da Câmara, que era um bocadinho lerdo de entendimento, porém presto para as multas. "O quê?", perguntou o homem-estátua, que já nem se lembrava do que tinha acabado de dizer. "Cagam-lhe em cima, as pombas?", interveio o polícia municipal, espaçando as sílabas e restabelecendo a ordem. "Os pombos. Os do Governo, os da Assembleia, os da Justiça, os da Saúde, os da TAP, os da CP, os da EDP, os dos Correios, os da Caixa, os da Igreja, os do Espírito Santo, esses pombos todos de gravata ou cabeção mas sem anilha, esses cagões", respondeu o homem-estátua, escarafunchando os bolsos profundos à procura dos apontamentos com a lista completa, nome a nome, a começar em Aníbal e a acabar em Ventura, à procura da lista imensa e do manguito do Bordalo, que também estava para ali metido, há que tempos há espera. Tinham sido realmente muitos anos de gesto suspenso e bico calado.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Bem prega frei Tomás

À capela
Cantava muito bem à capela. Pediram-lhe que cantasse à igreja. Disse que ainda não estava preparado...

Tomás era o faz-tudo do convento. Agricultor, apicultor, sacristão, chef de cozinha, porteiro, parteiro, telefonista, copista, contorcionista, iluminador, vendedor de imóveis, disc jockey, picheleiro, Pai Natal, guarda-redes, mas sobretudo era um carpinteiro de mão cheia. Fosse o soalho do refeitório ou empreitada mais modesta, de martelo em riste, pregador como ele não havia.

Jesus Cristo morreu em Fafe

A última ceia
Português, desempregado, 45 anos de idade. Quando finalmente conseguiu um "part-time" como homem-sanduíche, chegou a casa e deu-se de comer aos filhos.

As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português, nosso - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava à missa, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia cheios de aventuras e fazia a conexão que se impunha: se Nossa Senhora é de Antime, se São José é no Lombo, se os pastorinhos são de Fátima e a Samaritana é de Coimbra, se o Moisés é de Fafe e o Abraão também, se o João Baptista tem altifalantes e faz funerais, se os apóstolos são todos portugueses, sobretudo pescadores da Póvoa e Matosinhos, é só ver os nomes - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Filipe, Mateus, Tomé, Bartolomeu e por aí fora, nomes assim podiam ter jogado no Varzim ou no Leixões -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário é à beira do posto da Polícia de Viação e Trânsito e do Hotel, se a Avenida de Roma é em Lisboa, se Nazaré e Belém são obviamente em Portugal, se Damasco é alperce, se até o Espírito Santo somos nós que o pagamos, então o Menino Jesus também é daqui, aqui nasceu e cresceu, por aqui andou, faleceu e ressuscitou, também é português, um de nós. Deus é nosso. Se Deus quiser, até joga pela Selecção. Era o que eu pensava. Já grande, e após alguns anos de desengano e reeducação religiosa no seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu, após profunda reflexão, deixei finalmente de acreditar, regra geral. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à topogígia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas aos terceiros sábados de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar. E felizmente não é hoje.

domingo, 23 de novembro de 2025

Quando Ben-Hur foi impedido de entrar no presépio

A conversão do penálti
Foi uma conversão muito difícil, um processo doloroso e demorado. Perceba-se: era um penálti ateu desde pequenino e burro velho não toma andadura. Mas, pronto, vai ser baptizado no próximo domingo, logo após a missa das sete.

Ben-Hur queria entrar no presépio. Chamou o grupinho do costume - Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, Nuno Salvação Barreto, o Homem Mais Forte do Mundo e o Custódio Ardegão, que isto era em Fafe, e não fosse a coisa dar para o torto. E lá foram. O Pescador do Laguinho, que sabia kung fu e era segurança de discoteca em part-time, para além de fazer de figurante na cascata de São Pedo do Bairro da Granja, impediu-lhes terminantemente o acesso: - Noite temática, meus senhores, hoje é só anjos, pastores e reis magos. Ordens de cima. Apareçam pela Páscoa...

No Minho, mais perto do céu

Livro das lamentações
O dinheiro não cai do céu. E é pena.

O Minho cheira a Natal, sabeis? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa aqui é o Minho, e quanto mais alto melhor. Entra o Outono, a friagem, e o Minho, abençoado tempo, começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao gelo e fechar os olhos. E eu abro e eu largo e eu fecho. A janela, a cabeça e os olhos, respectivamente. Sou pendura, graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
Ando sempre de nariz no ar, tenho talvez um lado canino que desconhecia em novo e já começo a admitir. Farejo. Os cheiros interessam-me particularmente, orientam-me, transportam-me aos sítios. O cheiro a especiarias leva-me a Angra do Heroísmo, Óbidos cheira a chocolate, Fundão à flor da cerejeira e Vila Nova de Foz Côa às amendoeiras em flor. Fafe cheirava a sabão amarelo e Matosinhos cheira mal.
Que depressa vão os dias! Tinha razão o nosso bom padre Fraga: ainda há pouco foi Janeiro, passámos agora Agosto e já estamos no fim do ano, meus meninos. Estamos no Natal. Estamos sempre no Natal.
É. A memória também vai ao cheiro: a querida Bó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa esbotenada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, ainda assim, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, anda muito mal informado ou está a pensar nos  fogos de Verão. 
Então. Vamos lá, que são que horas! De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem da terra suada, letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados uns aos outros, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Medelo, Marinhão, Moreira do Rei, Várzea Cova, Passos logo ali em baixo, tecnicamente já em Cabeceiras de Basto, devagar se vai ao longe. Assim vamos, a Mi e eu, para não perdermos pitada. Tive tanta sorte: a minha mulher converteu-se ao minhotismo, já há muito, andamos sempre os dois ao mesmo. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Devia ser proibido alguém morrer sem ter uma mão dada e um céu assim para olhar. Olhar... e só então partir. 

sábado, 22 de novembro de 2025

Eu queria ser palhaço

Ele nunca brincava em serviço. O que, para um palhaço de circo, era talvez contraproducente.

Sonhava-me no circo, não do lado cómodo do público, mas no centro das atenções, no lado cómico, de nariz vermelho, cara pintada e sapatos de metro, a inventar alegria para os outros. E para mim. Isso, alegria para mim. Porque eu sempre quis ser palhaço. Ou por outra: quando eu era pequeno, em Fafe, primeiro queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, Tarzan, presidente da república, terrorista, papa, escritor, herói, cantor, ciclista, santo, piloto de avião de guerra como o Major Alvega e pirata.
Que se segue: já há muito que sou grande e, francamente, sou Tarzan e é um pau. Sou Tarzan como a maioria dos portugueses: estamos de tanga e isso é indesmentível, somos portanto tarzões.
Mas palhaço é que era! Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes até sou um bocado palhaço. Por outro lado - o das costas -, alguns filhos da mãe que não me gramam acusam-me de eu às vezes ser um bocado palhaço. Palavra de honra, às vezes e um bocado não me chega: eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.

O circo ao virar da esquina

Pediram-lhe que indicasse alguns dos principais números de circo. Envergonhado, lembrou-se apenas do 69.

Havia uns circos muito jeitosos, pequeninos, descapotáveis, que andavam de terra em terra, mas isto todos os dias, uma, duas ou três localidades por dia. Eram circos de rua, de esquina, próprios para terras de remediada dimensão. Nada de tendas, rulotes, camiões, jaulas, luzes, altifalantes, cartazes, grandes trupes, nomes extraordinários, antes pelo contrário. Eram circos de bolso, anónimos, amiúde unifamiliares - uma velha carripana, o homem, a mulher, duas ou três crianças, todos artistas, e o cão, magro como um faquir, mas não praticava. A fome devia ser muita. E o guarda-roupa deixava demasiado a desejar. A carripana era transporte, armazém, camarim e casa.
Em Fafe, na então orgulhosa vila de Fafe, abancavam no Largo, que era onde tudo acontecia, até a feira e a Volta a Portugal. Ali no ângulo da Rua 31 de Janeiro com a Praça 25 de Abril, num pedaço de passeio mais espaçoso onde hoje encosta, se não me engano, a Fafetur, era esse o sítio. O verdadeiro salão nobre da terra, com licença do Jardim do Calvário.
Eram circos sazonais e breves, praticamente espontâneos. Precisavam apenas de um cantinho, vinham num pé e iam noutro. Chegavam numa tarde de Verão, estendiam uma lona no chão, chamavam o povo ali à volta com umas gaitadas e iniciavam a função. Sempre a toque de caixa. Umas palhaçadas, umas cabriolas, sucintos números de malabarismo, equilibrismo e contorcionismo, às vezes até uma amostra de funambulismo ainda que curta e a baixa altitude, mas sim, porque circo que é circo obviamente trabalha no arame. Meia hora, se tanto, e estava feito. No final da apresentação e dos merecidos aplausos, uma das crianças, geralmente menina, passava pela roda do excelentíssimo público com um chapéu ou um prato na mão, recolhendo o dinheiro que cada um resolvesse dar de paga, e havia quem atirasse moedas de agradecimento para a lona coçada e rota. Assim, uma ou duas matinés, três no máximo, se a plateia o justificasse ou o dinheiro em caixa ainda não chegasse para a sopa, depois as crianças desvestiam-se do circo, os pais arrumavam os tarecos, a lona era recolhida, e toca a entrar na carripana, partiam todos, ainda de dia, decerto por causa da imensidão da viagem e aparentemente em direcção a Guimarães, que, no meu ponto de vista, naquele tempo, era em direcção ao mundo. E eu ficava como a noite.
Estes circos de porta a porta, de soleira, estes extraordinários espectáculos, ando capaz de dizer que seriam os sucessores ou, pelo menos, uma derivação directa dos saltimbancos que itineravam o Portugal mais profundo durante as décadas de cinquenta e sessenta do século passado, apresentando o famoso show da cabra ou "cabrinha", outro assombro dos antigos. Uma cabra, ou cabrito, vá lá, que fazia equilibrismos em cima, por exemplo, do gargalo de uma garrafa de cerveja, ela própria, a garrafa, colocada, por sua vez, em cima de um banco de madeira, dos de cozinha. Uma coisa realmente de pasmar!
A cabra, ou cabrito, vá lá, às vezes era um cão ou um gato, mais raro um macaquito marca sagui ou, também acontecia, um burro. Mas eu não me lembro de ver, nem essa parte me interessava por aí além. Não tinha, naquela idade, qualquer posição estruturada sobre a problemática da exploração de animais domésticos em sede de circo de pé-rapado, mas sabia, sempre soube, que de burros já estava Fafe bem servido. Basta pensar na burra do Reigrilo, e não é preciso ir mais longe...

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Diálogos fafenses 39

Grazie verigude!
A inglesinha abeirou-se-me sorridente e de mapa aberto na mão, meio perdida, pedindo-me que eu lhe dissesse onde é que ela estava, questão assim a modos que existencial. Indiquei-lhe, com todo o gosto: estávamos, ela e eu, em Matosinhos, exactamente no cruzamento da Rua do Godinho com a Avenida de Serpa Pinto, que, por sorte, era mesmo o sítio que ela queria. Estava lá marcado com um xis. Alargando o sorriso, bonito, a inglesinha simpática fez "Hã... hã... hã...", à procura da palavra certa, e, no seu melhor português, muito bem aprendido, bem treinado, saiu-se finalmente, toda satisfeita: - "Grazie!"...
Vá lá, podia ter sido pior. Se me tivesse atirado por exemplo "Muchas gracias!", abanando castanholas e rebolando as ancas, aí, sim, eu ficaria verdadeiramente incomodado.

Quando o Natal chegou a Fafe

É triste o fim do Natal
O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, terminasse até o Natal em k, Natak, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

O primeiro Natal que eu conheci em pessoa chamava-se Higino. Natal Higino. Ou por outra, chamava-se e chama-se, felizmente sobretudo para ele, mas também para nós todos que tivemos a fortuna de o herdar sem mais nem menos. O nosso Natal veio directamente de África, no tempo em que Fafe era o fim do mundo. Para quem viesse de comboio, como o Natal veio, acabar em Fafe era obrigatório, não havia mais linha, batia-se com o nariz na parede que aguenta até hoje a velha Rua do Retiro. Muito tratante desaguou assim em Fafe, para mal dos nossos pecados, mas o Gino é vinho de outra pipa.
O Natal chegou a Fafe em 1975. Tinha 19 anos de idade. O Natal chegou, Natal Higino, instalou-se nos Bombeiros, na Bomba, e tornou-se "como se fosse da família", que, tomai bem sentido, é muito mais e melhor do que ser mesmo da família. Creio não estar a dizer grande asneira quando afirmo que, na nossa terra, o mais forte laço "familiar" que nos une acaba por ser esse mesmo, o de sermos uns para os outros como se fôssemos da família, meus ricos meninos. A família sanguínea, de árvore genealógica, não passa de um que remédio, é uma fatalidade, cai de madura. A esse respeito, no entanto, devo ressalvar que a minha tia Laura e o meu irmão Nelo saberiam falar do Gino com muito mais propriedade do que eu, mas o Nelo, por recato, sei que nunca o faria, e a querida tia deixou-nos infelizmente há cinco anos, mas conto um destes dias trazê-la outra vez aqui. A tia Laura foi quem encarrilou o Gino para a vida.
O Natal chegou a Fafe, Natal Higino, e, apesar de alardear algum jeito para a bola, com passagens registadas por Antime, Vinhós e Estorãos, pelo menos, foi como espectador, isto é, como aplaudidor, que ele mais se notabilizou. Batia umas palmas que eram realmente um assombre, como se dizia em fafês, assombre, palavra inventada pelos músicos antigos da Banda de Revelhe, ou talvez não, porque um destes dias ouvi-a no Alto Minho e acertadamente encaixada, para minha surpresa e grande alegria. Um assombre! Umas palmas que, quando bem batidas, ouviam-se da Cumieira a Santo Ouvídio e da Fábrica do Ferro à Ponte do Ranha. Como se fossem duas rijas tábuas de soalho saídas da máquina da serração e lançadas violentamente uma contra a outra e ligadas aos altifalantes do Baptista, um estrondo assim tremendo, uma coisa nunca ouvida! Lembrais-vos do PA-SSA A BO-LA! do tonitruante Aníbal Carriço? Pois estas palmas andariam por lá perto. Em todo o caso, um extraordinário melhoramento sonoro para Fafe, e sem despesa para a Câmara ou para o Governo. Para além disso, Natal Higino, que veio de África, soube fazer-se fafense excelentíssimo. Que é! Acrescentai-o à lista, se fazeis o favor.
O Natal, o nosso, trouxe um apenso de alegria e bondade a Fafe. O Higino é isso, um homem alegre, bom, generoso, honrado, companheiro. Para o Gino, toda a gente tinha a categoria de Você. Era o meu tempo de seminário, e o Gino chamava-me "Sacerdote". Suponho, aliás, que ainda hoje me chama "Sacerdote". Éramos, somos, amigos. A minha mulher sabe quem é o Gino, o que o Gino representa, conhece-o, que eu apresentei-lho, e isso é o topo no meu barómetro da amizade, prenda tão rara.
Eu não sei se Fafe já se apercebeu da sorte que teve por causa do comboio acabar obrigatoriamente ali e dele ter saído por acaso o Gino. Eu tenho noção. Ao longo da vida vim a conhecer alguns Natais, não muitos, porque o nome também não é assim tão popular, mas não me lembro de outro que me tenha verdadeiramente impressionado. E acho que sei porquê. Porque, como noutras encomendas da vida, não há Natal como o primeiro. E o meu chamava-se Higino.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Ele e os cigarros

Algo de definitivo
Havia algo de definitivo no que ele dizia. Ele dizia: - Já não se fazem cigarros como antigamente...

Ele não fumava os cigarros. Ele comi-os, três a quatro maços por dia, um desastre para a saúde! Eram de chocolate e vinham embrulhados em pratinhas de cores variadas e apetitosas.

Firme e hirto como uma barra de ferro

O grande prestidigitador
Era um mágico extraordinário: em vez de coelhos da cartola, tirava macacos do nariz.

Não sei se foi pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, talvez fosse pelo Natal ou então ocorreu num dia qualquer, anónimo, um dia sem atributos que o destaquem ou recomendem. Mas aconteceu. Uma vez, um artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista veio dar um espectáculo ao nosso Cinema e eu, que era mocico e pobre, não entrei, não vi, porque era preciso pagar bilhete para entrar. E era uma bonita tarde de sol. Para chamar povo como no Poço da Morte dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, o artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista fez cá fora, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, o famoso número de conduzir um carro com os olhos vendados, naquele bocado de estrada entre a esquina do Santo Velho e o ateliê do Zé Manel Carriço, exactamente nesse sentido, que era permitido na altura, nem cem metros sempre em linha recta, assim também eu, foi o que então pensei, e no entanto ainda hoje não sei conduzir nem tenho carta de condução, com os olhos abertos ou fechados. O mirabolante número da condução em braille terá sido feito cá fora de mais a mais porque lá dentro decerto não daria jeito, cheguei também a essa importante conclusão aqui atrasado, quando finalmente percebi que o bonito Teatro-Cinema de Fafe, apesar de realmente glorioso e frequentemente "icónico", é muito mais pequeno do que eu o supunha no meu tempo.
Esperei pelas horas à sombra, no passeio em frente, fazendo malha com o cotão dos bolsos, discretamente, encostado à histórica casa-mãe dos Summavielles, como já lhe chamei, e que era habitual sítio de estar, antes e após o cinema, e nos intervalos também. No final da função, os ilustres que pagaram para entrar e ver disseram-me que aquilo lá dentro não prestou, que não valera o dinheiro. Felizmente para eles, a saída era de graça...
O artista talvez fosse o Professor Karma, esse extraordinário e irrefutável hipnotizador de galinhas, lembrei-me agora, mas de momento não estou em condições de o afiançar sem correr risco de levar com um par de desmentidos no focinho. Era, em todo o caso, um Professor Karma qualquer, ainda que vestisse outro nome mais ou menos estrambólico. O grande Zandinga não foi, esse haveria eu de conhecê-lo pessoalmente, alguns anos mais tarde, numa noitada para lá de estranha, no Porto. E Alexandrino, o cromo do "firme e hirto como uma barra de ferro" a quem Herman José deu fama, é muito mais recente, ainda nem sequer tinha sido inventado.
Em Fafe apareciam de vez em quando uns fenómenos assim, vendedores de sonhos e de retroescavadoras com luzinhas, empresários de carregar pela boca e artistas a bem dizer, micro e pequenos vigaristas em tournée pelo país que era paisagem e gostava bastante de ser levado de conversa. De preferência, a preço módico. Uma ocasião até nos quiserem impingir uns sensacionais espectáculos de luta livre, nos antigos Bombeiros, era só tirar os carros todos cá para fora e montar lá dentro o ringue e assentos à volta, realmente uma trabalheira, e o meu avô, que era o quarteleiro, torceu logo o nariz. Prometiam-nos um festival de pancadaria a fingir, mas eu não sabia, com os assombrosos Tarzan Taborda, José Luís e Carlos Rocha, eram os nomes dos cartazes, vindos directamente do Coliseu dos Recreios, do Parque Mayer e do Pavilhão dos Desportos de Lisboa, pelo menos os retratos colossais, e para mim era como se viessem do Coliseu de Roma. A coisa ficou sem efeito, nunca soube porquê, ninguém me consultou nem explicou, o meu avô foi dormir a sesta, todo contente, e eu fiquei-me com um desgosto que até hoje. Carago, nos Bombeiros eu tinha borla garantida...

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Quantos eram os três reis magos?

Como um camelo
Dizer-se que ele bebia como um camelo, era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias.

Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem eram Magos. Provavelmente inexistiram. Ou então seriam Moët & Chandon. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor, um cavalinho de pau e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior jogou na selecção de futebol de praia. Por outro lado, que raio de ideia foi aquela de oferecer mirra a uma criança? Mirra!? Mas isso é algum presente?...

Antes que lhe caia a pirângula

O perigo de ougar
Os anjos não têm sexo. Quer-se dizer: tinham, mas queriam mais, ougaram e caiu-lhes a pirângula, como se dizia em Fafe.

Em terra de pobres, a norma era desougar. Não havia fartura, faltava até o mero suficiente, mas procriava-se com prazer, abundavam evidentemente as crianças, e então dava-se-lhes apenas a provar, e por uma boa razão, essencial, para manter os futuros homens inteiros e artilheiros, como adiante se verá. Ougava-se muito, antigamente, sobremaneira cá em cima, no velho Douro, em Trás-os-Montes, no nosso Minho, em Fafe especialmente, lembro-me bem, ougava-se, noutros sítios do Portugal triste e escanzelado dir-se-ia decerto doutra maneira também pândega para disfarçar, mas a querer dizer sempre o mesmo: pobreza. Fome, quando não.
Ougar, ou "ògar", de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo embora morresse cedo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei, o homem: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Diálogos fafenses 38

O orador
- Profissão?
- Orador.
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.

Quando Fafe ia ao circo

O homem-bala
Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Deixava o circo. Ia embora para casa. Descobrira durante a noite que era objector de consciência.

Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, patuscos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mariani, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, "com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia", ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que vinha a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960 que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Ricardo, o Circo Pedro, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Antunes. O Circo Maria das Dores. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, as meias, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional? Tempo de serviço em recuperação?
O circo chegava e a vila espertava. A vila precisava. Saía do mormo, arrebitava. Fafe vivia intensamente os seus dias de circo, havia assunto, havia mundo, havia... vida. Havia emoção, havia sonho, havia alegria, riso, havia medo, havia pena, tristeza, saudade antecipada, porque depois só para o ano. Fafe ia ao circo. Toda a gente ia ao circo. Mesmo os que não iam, por miséria ou embirração, era como se fossem, só de imaginar ou ouvir contar. Não se falava de outra coisa, no café, no tasco, na feira, no campo da bola, à saída da missa, fazia-se crítica, propaganda, comparava-se com o ano anterior. Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos -, de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Vila Franca de Xira - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
Só a carripana com altifalantes sobressaltando as pacatas ruas da vila antiga já era uma festa, era circo ao domicílio. "Hoje grátis às damas, damas grátis!", prometia-se ambiguamente na véspera da despedida, parecia um anúncio de casa de putas em saldos, mas eu ainda não sabia. O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista desembaraçado na Banda de Revelhe, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do grande Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...
O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha, encostadinho à antiga escola primária cujas defuntas pedras depois se transformaram, por milagre, em capela de casa particular. E era porreiro o circo ali, porque vós hoje em dia não fazeis ideia dos deslimites do fedor a que pode chegar a jaula de um leão velho, mas eu e os da minha escola sabemos, graças a Deus. O circo creio que frequentou outros lugares da nossa vila, e lembro-me por exemplo de uma vez em que se instalou num terreno convenientemente devoluto ali para os lados da Recta, mas a Feira Velha é que era o sítio. Gosto de dizer, a Feira Velha, gosto de me ouvir dizer, a Feira Velha. Agora mesmo, escrevo e digo, vêm-me as lágrimas aos olhos por causa de duas palavras de nada, pareço tolo. Feira Velha. A Câmara Municipal, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras municipais, meteu lá carros a cobrar à hora e é o que temos. Mas diz que vêm aí os novos jardins suspensos da Babilónia. É o que veremos.

Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância, adivinhando Fafe, e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Por outro lado: o circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Somos os circo de nós mesmos. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, dão-nos a volta à cabeça, sufocam-nos, caímos que nem tordos sem capacete.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

No tempo dos codaques

Jacuzzi!
Contra a injustiça e a mentira, o indignado escritor tirou a roupa e gritou: - Jacuzzi! E entrou para a história.

A câmara Kodak foi registada pelo americano George Eastman em 1888. E alcançou tamanho sucesso que a marca rapidamente se transformou em sinónimo do próprio produto, em substantivo comum. Codaque passou a significar máquina fotográfica. Ainda hoje, para os mais antigos como eu, em Fafe e por esse mundo fora, um codaque é uma máquina fotográfica, seja de que marca for, e uma máquina fotográfica, seja de que marca for, é um codaque. Ou por outra, trabalho é trabalho e codaque é codaque.
Exactamente como se passou com o sumol, o panique, o pirex, a gilete, a chiclete, o cotonete, o jipe, o caterpílar, o cimbalino, o lego, o jacuzi, o taparuer, a vaselina, o velcro, o quispo, o curita, a lambreta, a vespa, a mobilete, a solarine, o botox, a licra, o filofax, o post-it, o x-acto, o rímel, o sonotone, a aspirina e as crocas - que eram marcas e passaram a ser coisas.
Actualmente os telemóveis também são codaques, e fazem o serviço praticamente sozinhos. Noutros tempos, cá entre nós, quando éramos turistas de pé-descalço e íamos de excursão visitar o Portugal dos Pequenitos, o nosso codaque era o garrafão de vinho. Sim, dizíamos que o garrafão era o codaque. Os japoneses lá com as máquinas fotográficas deles, sempre sorridentes e de cabeça a abanar, e nós, finos como alhos, com o de cinco litros a tiracolo ou atarraxado aos queixos, víamos tudo a dobrar e pelo mesmo preço.

Ia-se ao Largo ver os retratos

E o número da máquina fotográfica?
- Passei o dia inteiro a ligar-lhe para o telemóvel, mas dava sempre impedido...
- Quando for assim, ligue-me para a máquina fotográfica.

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Só era pena morrerem tão cedo e sem saberem de quê. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar aventuras mais ou menos (hi)malaicas. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, queixinhas, nem pensar, ou ainda levávamos mais quando chegássemos a casa.
Os campos nas nossas traseiras, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos estaríamos depois outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me particularmente de uma ocasião, um  verdadeiro acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso. O Foto Victor era um dândi, no melhor sentido, e os filhos para lá caminhavam.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede, como quem olha para o Mário da Louça e para a Electra. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, para o "reagrupamento familiar", ontem como hoje, mas, já de malas feitas, acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal francês, desgraçadamente na neve, apenas dias depois, um ou dois meses antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que é assim.
Fafe era uma terra compacta e tudo acontecia no Largo. A feira semanal, a feira das cebolas, os 16 de Maio, a Senhora de Antime, a Volta a Portugal, cortejos alegóricos, corsos de carnaval, batalhas de flores, circos de manga curta, robertos, gincanas automóveis, corridas de patins, corridas de jericos, corridas de São Silvestre, passagens de ano, dias dos combatentes, desfiles da Mocidade e da Legião Portuguesa, despedidas e chegadas, encontros, reencontros, partidas para a Ultramar. Era tudo ali. O Largo era o centro, o Largo era Fafe. Nas ruas e nos lugares das redondezas dizia-se "Vou a Fafe", querendo dizer que se ia ao Largo.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para Angola, Moçambique, Guiné. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses universo que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, o soldadinho condecorado na guerra e que haveria de chegar num caixão, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos, não senhor...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa tola, sem sentido, nós em casa por acaso éramos Foto Jóia! Fazia parte, em Fafe, esta maneira de nos dividirmos por tudo e por nada, uns por uns e outros por outros, como claques de nascença e irremediáveis, por causa dos dois clubes de futebol, das duas bandas de música, dos dois cangalheiros, da Escola Industrial e do Colégio, da Fábrica do Ferro e do Bugio, do Fredinho Bastos e do Tangerina, dos "Bombeiros Novos" e dos "Bombeiros Velhos" e do mais que se pudesse inventar e sobretudo desse para desunir, disputar, desconversar, ateimar. Era a trave mestra da boa e velha idiossincrasia fafense, concordar apenas em discordar, sem dúvida um bom princípio democrático, mas muito pouco jeitoso para o lado prático da vida. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o tasco do Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me constam notícias de confrontos ou baixas a registar.

domingo, 16 de novembro de 2025

O pregador

Stultorum infinitus est numerus
Depois de gastar o seu latim, gastou também o seu grego e as luzinhas que sabia de aramaico. E nem assim...

O pregador subiu ao púlpito, e os seus passos seguros, pesados, degrau a degrau, ecoaram em stereo litúrgico na igreja confortavelmente vazia. Estranhamente vazia. Constava que ele era o melhor pregador da região...
O pregador não iria, porém, deixar os seus créditos por mãos alheias. Compenetrado mas decidido, agarrou nas três tachas que levava na ponta da língua, sacou do martelo que trazia à cintura, e em menos de um padre-nosso já tinha consertado a estante que o sacristão escangalhara sem querer nas arrumações da missa das sete.

Gaza era na Recta de Armil

Vinho na pipa
couves na horta
se não nos der nada
cagamos na porta

A casa do Sr. Carlos da Cantina, na Recta, tinha no portão um aviso que dizia, mais ou menos, "Atenção! Perigo! Propriedade protegida por arma de fogo!", e aquilo metia-me muito medo, arrepiava-me, perseguia-me, não porque me passasse pela cabeça enveredar pela carreira de assaltante de residências, longe disso, caramba, a minha mãe batia-me, mas porque, na minha natural infantilidade e ignorância, eu ainda não ligava "arma de fogo" a espingarda, caçadeira, metralhadora ou pistola, mas a uma série de armadilhas explosivas e incendiárias que rebentariam sem dó nem piedade em todo o perímetro mal alguém ousasse sequer pôr o pé na vedação, por acaso alta e gradeada. Não haveria sobreviventes. Aquilo não era uma casa, era uma mansão, um cofre-forte ou quartel-general, um búnquer, uma imensa ratoeira, um cogumelo nuclear em potência, com muito terreno à frente e hei-de crer que também atrás. Eu, ai ninas, mudava sempre para o outro lado da rua quando por lá passava por algum recado.
Portanto, para quem não soubesse que o Sr. Carlos da Cantina era um homem rico, muito rico, o aviso pedante estava lá: - Sou! E é tudo para mim. Isto é: estais a ver o Marco Paulo? No que diz respeito a fortuna, cinjamo-nos a esse departamento, o Sr. Carlos da Cantina devia ser um bocado como o Marco Paulo, mas em careca. Filhos, não posso precisar se tinha ou não, não me lembro deles se os houve, pelo menos não foram das minhas relações, o que só lhes abonaria a favor, mas sei que tinha um afilhado, que também se chamava Carlos, noblesse oblige, creio que o rapaz morava frequentemente lá no palácio e foi meu colega de escola primária, na Conde Ferreira. Era um moço porreiro, o Carlos, não sei dele há que séculos, e o que lhe estimo é o que lhe desejo.
A Recta, ou mais propriamente Recta de Armil, como então se dizia, é a Avenida de São Jorge. Era uma recta de respeito, antes de se ver interrompida por semáforos e outras alcavalas urbanísticas. Era uma recta tão recta e comprida, sem fim à vista, coisa até então nunca experimentada na nossa terra, que passou a chamar-se desta maneira, Recta, com maiúscula outorgada pelo povo, que nestes assuntos vale mais do que papel do Registo. Estais a ver o Estádio Nacional, imponente, redondo e fascista? A nossa Recta também era assim, mas sempre a direito. Na Recta realizaram-se provas de atletismo escolar - haverá decerto ainda quem se lembre de por lá ter corrido.
E o Sr. Carlos era da Cantina porque era o responsável-mor pela Cantina da Fábrica do Ferro, grande negócio, uma mina, e era por isso que era rico, muito rico, porque todos os responsáveis da Fábrica do Ferro ficaram ricos, muito ricos, só os operários, evidentemente irresponsáveis, é que ficaram pobres, muito pobres, e se, pelo Natal e por vingança, algum deles, mais atrevido ou revolucionário, resolvesse saltar o muro do shangri-la do Sr. Carlos da Cantina tendo em vista, digamos assim, orientar uma braçada de couves-galegas para a panela da consoada, morria logo ali que se fodia, feito em picado como na Guiné, e essa imagem não me saía da cabeça.
Ainda por cima, uma vez, em Passos, isto é, em Basto, nas minhas inesquecíveis férias de Verão, vi uns rapazes a construírem uma verdadeira "arma de fogo", com um pedaço de madeira, um tubo, arames, pólvora, farrapos e varetas de guarda-chuva aguçadas, que eram as balas. Chamavam àquilo "espoleta" ou, realmente, "esporeta". Era para ir à caça, e foram. Um dos miúdos ficou cego de um olho, já não me lembro se derivado a explosão desorientada ou vazado pelo projéctil - meteu-me impressão, de qualquer maneira. E eu, tornando a Fafe e ao fort knox do Sr. Carlos da Cantina, imaginava milhares de varetas de guarda-chuva a rebentarem-lhe do quintal inteiro e a assobiarem os ares, como se fosse Senhora de Antime ou talvez Gaza, porque flamejantes as varetas, certeiras e mortíferas na descida, levando tudo a eito, a ferro e fogo, desde a Parefa, sejamos razoáveis, pelo menos até ao tasco do Lando da Recta, no fim da mesma, onde a estrada começa a curvar e a descer para Armil. Uma carnificina extraordinária, espectacular, nunca vista em lado algum, nem mesmo no nosso Cinema, que, não desfazendo, era de tiro e queda e de caixão à cova, sexo é que não. E a gente a morrer ali desalmadamente, sem tempo sequer para levar a caneca aos queixos.
Ora bem. O que eu digo é o seguinte: conheci muito bem o Sr. Carlos da Cantina e a sua imensa viatura, mas sou capaz de admitir que o filho da puta do letreiro de ponta e mola me tenha indrominado a mente a respeito do homem em pessoa, que se calhar até era uma jóia de indivíduo, eu que é estou para aqui a fazer filmes. Admito, sim senhor. Aliás, tanto quanto sei, entre mortos e feridos, jamais alguém se aleijou. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, nunca lhe fui cantar os Reis ou as Janeiras, no tempo deles e delas, nessa nunca me apanharam. Eu, que era um solista requisitado por vários e afamados grupos, voz de anjo já com certificação seminarística, tinha medo àquele reclame armado em parvo, já disse, ali nunca ninguém me haveria de ouvir. Cagar-lhe à porta, talvez. Mais do que isso, não.

P.S. - A quadra lá de cima era cantada, em Fafe, no final das Janeiras e dos Reis, espécie de encore caso tardassem a abertura da porta da casa e a moedinha da ordem. E, na verdade, não se dizia "cagamos" mas "caguemos", "caguemos na porta", como se ainda faláramos o velho e indesmentível galego, de onde nos nasceu a língua. Era também uma reclamação, um aviso, mas da parte de fora, uma ameaça, quem sabe se alguma vez consumada... 

sábado, 15 de novembro de 2025

Coisa de homens

O Super-Homem
Admitiu finalmente que era o Super-Homem e, diga-se em abono da verdade, ficou bastante admirado por sê-lo.

Era o tradicional convívio natalício. Um encontro de homens. Estavam lá todos, ou quase todos. O homem-aranha, o homem-formiga, o terceiro homem, o homem elefante, o homem que é homem, o homem-rã, o homem sonha a obra nasce, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem-bom, o homem que sabia demais, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina, o homem dos sete instrumentos, o homem de mão, o homem que mordeu o cão, o homem do leme, o homem da luz, o homem-prazol e até o homem-bata, que quase existia. Nisto entra a mulher falcão, apanhando o porteiro de costas. Ó meu Deus, foi um escândalo...

Fafe cheirava a sabão amarelo

Ele era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. Lavava, lavava, lavava. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem.

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxado e repuxado, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, às tílias do Santo Velho, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas pela Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. Cheirava ao incenso da procissão do Corpo de Deus. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 16

Chuva moderada

Olho pela janela e chove.
Chove que Deus a dá
porém não chove
por aí além
porque a crise já se sabe
chega a todos
inclusive ao Sempiterno
ao Senhor das Águas.

Durante quase toda a noite
fez um sol de categoria
sei porque sonhei
mas agora não
não faz sol nem sonho.

Olho pela janela e vejo
telhados vermelhos e cinzentos
cinzentos suspeito que de lusalite
e quase me dá uma himoptise
tusso e desisto.

Eu tusso muito bem
e desisto ainda melhor.

Vejo cinco telhados cinco
o resto são paredes paredes
de prédios de doze andares doze
cheios de janelas e marquises marquises.

Paredes prédios a precisarem pelo menos de pintura
pintura.

Nos telhados nem um gato
nem uma gaivota
nem uma pega
um melro sequer.
Estão cá sempre todos
menos o melro que eu nunca vi
e hoje
agora
não sei o que lhes deu.

Ter-lhes-á sucedido
confinamento?

Estou sem gatos,
sem pássaros,
sem sol.
Chove apenas. Moderadamente.

Digamos
períodos de chuva ou aguaceiros
em geral fracos
a partir do meio
da manhã
e já vamos a estas horas.

Assim não há condições
para fazer poesia,
condições
para que a poesia aconteça.

Acho
que vou escrever
um romance histórico
com 987 páginas.

Entrego-o amanhã
se não chover.

O telefonema do padrinho

Foto Tarrenego!

O meu padrinho era sempre o primeiro. Entrávamos no mês de Dezembro, logo nos dias iniciais, o telefone cá de casa tocava e eu sabia mesmo antes de atender: era o meu padrinho, para nos desejar boas festas. E confirmava-se. Eu retribuía ligando-lhe duas ou três semanas depois, ao cair da noite de 24, precisamente, já nos prolegómenos da ceia de Natal. O meu padrinho bem percebia a minha malandrice, mas fazia de conta que não. E no ano seguinte lá tornava ele à jogada de antecipaçãozíssima.
O meu padrinho era um homem muito bom. Quem o conheceu, sabe que não estou a mentir. Era tão profundamente bom, que não sabia ser mau, mesmo quando queria ou precisava de arriar a giga. Nessas ocasiões, raríssimas, faltava-lhe a voz, a fúria sumia-se como se por falta de comparência, soava a falso, creio até que funcionava ao contrário, parecia que era a mangar, e eu, se por acaso estivesse por perto, desmanchava-me a rir. E respeitava-lhe a bondade.
O meu padrinho chamava-se Américo, Tio Mérico, Américo da Bomba, Sr. Américo, Comandante, e certamente por causa dele é que carrego este extraordinário nome de Américo Hernâni, que devia ganhar um prémio pelo menos nacional de esdruxulice. Mas eu perdoo-lhe. Por outro lado, com um nome próprio assim redundante, Américo e Hernâni, naquele tempo de benfiquismo a bem da Nação, eu só podia dar portista - e dei. Foi a minha sorte. E agradeço ao meu padrinho. Felizmente, o meu coração é desde nascença de uma só cor, azul e branco, às vezes também rosa bebé, outras ocasiões amarelo desbotado, conforme o equipamento do adversário, enfim, o que for melhor para o negócio das camisolas.
O meu padrinho era o irmão do meio do meu pai, que era o mais velho. Lá em cima, no retrato antigo, estão os dois, fardados de músicos da Banda de Revelhe, suspeito que posando ao lado do então novo Tribunal de Fafe. O padrinho é o do casaco e boné, todo tirone. Depois havia o mais novo, o meu tio Zé da Bomba, a quem os amigos e colegas de estudos chamavam "Fone", mas que, no nosso caso concreto, precisava mesmo de ser "da Bomba" para o distinguirmos do meu tio Zé de Basto.
O meu pai morreu num Natal gelado e francês, muito antes do tempo e sem aviso. E os irmãos resolveram ir ter com ele, uns anos mais tarde, primeiro um, depois o outro, como se também não tivessem mais nada para fazer por cá, e estavam redondamente enganados. Os três. Ainda hoje nos fazem faltam.
Que se segue? Eu já estava afeito a ele. Sem o telefonema do padrinho, tão fiável, antecipado e cómico, como que a abrir o calendário do Advento sem o saber, os meus natais já não são o que foram, perderam muita da sua graça. O primo Miguel, filho do tio Zé e também afilhado do tio Américo, ainda agarrou a pasta, durante uma temporada, e passou a ser o primeiro. Remediava enquanto durou, sou sincero. Porque, a verdade é só uma, tinha de ser um Bomba, e dos assumidos. E eu gosto do Miguel! Mas não era a mesma coisa.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Bai-me à benda!

Leve 5 e pague 6!
Ele era um consumidor compulsivo, adorador de promoções. Se lhe aparecesse à frente "Leve 5 e pague 6!", aproveitava logo.

Fafe é uma grande superfície de grandes superfícies. Não sei se já cá estão todas e se cabem cá todas, porque há sempre lugar para mais uma, mas a verdade é que, tirante elas, sobra cada vez menos Fafe à vista. Atenção: eu não critico a invasão, admito até que esta fartura sem peso nem medida possa ser muito boa para Fafe e para os fafenses em geral, quero dizer, para os fafenses consumidores e/ou à procura de emprego, decerto não faltarão argumentos e talvez razões que a justifiquem ou tentem justificar. E também não sei se podia ser de outra maneira. Digo apenas o que vejo. E, chegados a Dezembro, sorrio ao ver o Município anunciar, candidamente, ou então como remedeio ou descargo de consciência, que... "Natal é no comércio local!"

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 15

Um grande igualmente e uma boa continuação
n
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na

O mais baixo magistrado da nação

Um homem bem apetrechado
Ele tinha uma panóplia de argumentos, uma panela de pressão, uma visão estratégica, uma caixa de pandora e carradas de razão. Era realmente um homem muito bem apetrechado.

De acordo com a constituição, o mais alto magistrado da nação deve medir para cima de 1,73 m, considerada a altura média dos portugueses homens. Se o mais alto magistrado da nação for por acaso uma mais alta magistrada da nação, então basta medir para cima de 1,63 m, considerada a altura média das portuguesas mulheres. Luís Marques Mendes, que é homem do sexo masculino, mede 1,61 m calçado e é candidato à Presidência da República, faz ele muito bem. António Vitorino, que também é homem do sexo masculino, medirá, talvez de palmilhas, mais um centímetro do que Marques Mendes, isto é, 1,62 m, e algum PS queria que ele se candidatasse à Presidência da República, mas ele fugiu. Foi pena. A campanha eleitoral prometia uma empolgante luta de titãs entre estes dois. É certo que, nas actuais circunstâncias, nem o nosso Luisinho nem o escapista Vitorino obedecem às normas. Mas era fácil de resolver. Fazia-se, a este propósito, uma revisão constitucional. Uma revisão à constituição dos portugueses. Nada de profundo ou trabalhoso, nada que implique força bruta ou possa dar ideias aos neofascistas mais ou menos hemiciclistas. Eu sugeria apenas um acerto, um ajuste directo, uma revisão constitucional por medida, por baixo. Uma revisãozinha, vá lá. Coisa talvez de doze ou treze centímetros...
Napoleão, que era Napoleão, media pouco mais de metro e meio, segundo os ingleses, ou um metro e setenta, para os franceses. Sem cunhas, saltos altos, sapatos de plataforma ou outras alcavalas, Silvio Berlusconi media 1,65 m, que é também a altura de Nicolas Sarkozy, Dmitry Medvedev mede 1,57 m, Vladimir Putin mede 1,67 m, Rishi Sunak, Emmanuel Macron, Olaf Scholz e Volodymyr Zelensky medirão todos 1,70 m, número redondo, e Kim Jong-il não se sabe bem, mas medirá entre 1,55 m e 1,65 m, sendo possível que na gloriosa versão oficial meça dois metros e quarenta, pelo menos.
Alto é o almirante. Alto e para o baile. Gouveia e Melo fez saber que mede 1,93 m bem esticadinho, mas que isso não lhe sirva de argumento, ou então que se meta com alguém do seu tamanho. Aliás, eu creio que entre nós, portugueses, o conceito de mais alto magistrado está desnecessariamente sobrevalorizado e tende até a promover uma mal disfarçada discriminação. Os tempos são outros, povo meu! Porque não aproveitarmos as próximas presidenciais para elegermos, pelo contrário, o mais baixo magistrado da nação?

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 14

Branco é

Branco é
galinha o põe
-te em guarda
nacional republicana
socialista e laica
dela

Estamos no Natal, meus meninos!

Massa ao quartilho
Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.

O Natal começa cedo cá em casa. O mais tardar no início da segunda semana de Novembro, a minha mulher tira um dia, desencaixota o Natal e espalha-o pela casa inteira. O pinheiro, os presépios, a aldeia de Natal, bonequinhos de neve, arranjos de mesa, canecas de Natal, Pais Natais de todos os materiais, tamanhos e feitios, laços, lacinhos, azevinhos, estrelas-do-natal naturais e artificiais, soldadinhos de madeira a fazerem de soldadinhos de chumbo, peluches alusivos e musicais, Ferrero Rocher, Mon Chéri, calendários do Advento, bengalinhas, comboiinhos, renas e grinaldas e estrelinhas e anjinhos, velas, bolas e embrulhinhos por todo o lado, em todos os cantos e corredores, em todas as portas, em todas as divisões, incluindo casas de banho, despensa e quarto de arrumos. A iluminação é geralmente inaugurada quando o Kiko e a Sara vêm jantar, que é à quinta. A minha mulher gosta muito do Natal, o meu filho gosta muito do Natal. Eu gosto muito da minha mulher e do meu filho. Portanto, que remédio...

No ano passado metemos o galo no presépio. Todos os anos experimentamos pelo menos um melhoramento natalício, há muito que andávamos com o galo debaixo de olho, e foi no ano passado. E lá ficou ele, instantaneamente afeito aos seus novos quefazeres, altaneiro e bico calado, mas gostamos de imaginá-lo todo kikirikiki como o Jerónimo do reclame da Compal na televisão, a anunciar o nascimento do Menino Jesus exactamente às 7h30, conforme muito bem podia constar da Bíblia.
O nosso galo do presépio é "um" galo de Barcelos, mas, atenção, não é "o" Galo de Barcelos. Nada de parolices, valha-nos Deus! É um galo de capoeira, obra de mestre barcelense, isso sim, 6x4 centímetros, a obra, um euro e meio, o preço. É arte, comprada nas barraquinhas do Senhor de Matosinhos.
Só presépios temos nove, para além de mais meia dúzia de Meninos Jesus avulsos, e nem a varanda e o escritório escapam ao nosso Natal. Pusemos o galo novo no presépio principal, evidentemente. O nosso é um presépio inclusivo, ao contrário do presépio do falecido papa Bento XVI, que em 2012 resolveu expulsar a vaca e o burro, porque, sentenciou, no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto, concluí eu, também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobravam, inequivocamente, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Ratzinger. Estiveram os reis magos e os anjos cantadores. Os anjos também estiveram.
Que se segue? Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior, aliás Belchior, e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Na verdade, eu por acaso até sou capaz de acreditar mais no burro e na vaca do que nos anjos e no presépio completo, a começar pelo dogma da virgindade de Maria tal como está estabelecido. Mas quê? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos, e foi este o pagamento que o burrinho e a vaquinha receberam.
Cá em casa não expulsamos ninguém, antes pelo contrário. No nosso presépio entram todos. Todos são bem-vindos, sem excepções. Pastores, trolhas, cabrinhas, escafandristas, empregados de mesa, com e sem-abrigo, prostitutas, levandiscas, lambe-botas, grilos, reis magos e outros artistas de circo, polícias municipais, cães e gatos, sapos e ciganos, evidentemente o burro e a vaca, que se lixe o Vaticano!, e desde ano passado o galo. Este ano, por causa das coisas e para fazer coro, a Mi trouxe outro galo, mais um burro, mais um vaca e mais um ovelhinha, um camelo avulso, isto é, sem rei mago em cima, um pato, um coelho, um peru e um porco, sim um porco, se calhar para o ano traz um elefante, uma avestruz e um peixinho-dourado, talvez com aquário, e depois um crocodilo e uma tartaruga, o Ben-Hur, se também quiser, o He-Man, o Super-Homem, o homem-estátua, a Justiça de Fafe, a Barbie, o Nenuco, a Popota, a Irmã Lúcia, os Power Rangers, o Padre Cruz, os Transformers e as Tartarugas Ninja, o Zé Povinho e o Fradinho das Caldas, o Tutankhamon, o Yoda, Marcelo Rebelo de Sousa e até Bento XVI se entretanto sair em boneco.
Deus é grande, e o nosso presépio será cada vez maior.

É. Chegamos ao Verão e a minha mulher começa logo a programar o Natal, a fazer compras de Natal, a falar do Natal, e realmente num lampo estamos lá, num lampo estamos cá. Agora, nesta idade, os dias fogem-nos com uma bolina que já não conseguimos controlar. "Estamos aqui, estamos no Natal!", dizemos quase sem querer. E de repente estamos, mal acabamos de dizer. Como se estivéssemos sempre no Natal. Como se o Natal fosse um presente contínuo. E, olhai, do mal o menos.
Faz-me lembrar o padre Fraga, mestre e amigo na minha infância sacrista. Há muitos anos, no seminário, em Braga, o querido padre Fraga passava a vida a tentar chamar-nos à razão, a apelar ao redobrar do esforço no estudo, à recuperação de notas, ao brio escolar. O bom padre Fraga, Albano Teixeira Fraga, que é fafense de Travassós e que se desfazia em riso de cada vez que queria falar de mau, perorava com os braços cruzados no peito, gesticulando com uma mão de cada vez, "por um lado isto, por outro lado aquilo", coisa bonita de se ver. Ele tinha uma teoria, um argumento poderoso. Estávamos ainda em Janeiro, no início do 2.º período, e o padre Fraga agitava as juvenis (in)consciências, alertando, apocalíptico: "Porque, meus meninos, estamos no fim do ano!..."
Isso. A urgência da vida. Com o padre Fraga, desde o princípio do ano que estávamos no fim do ano, não havia tempo a perder. Cá em casa, a Mi é com o Natal. Os nossos Natais, verdade seja dita, são como os cigarros das férias grandes, que eu, o Bilinho e o Bergiga íamos fumar às escondidas atrás do Jardim do Calvário: acendem-se uns nos outros.