quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A moda ou a modinha

A moda pode ser fatal
Os andarilhos estão na moda. E as bicicletas, para outro tipo de clientela. Os andarilhos, as bicicletas e as trotinetas. As cenas de pancadaria, facadas, tiros e mortes entre jovens bandidos, por nada ou por quase nada, também. Sobretudo facadas. A malta nova anda agora toda por aí com naifas, como quem usa boné ou sapatilhas de marca. É. As televisões de faca e alguidar tratam da propaganda, montam o espectáculo, ensinam como se faz. A moda tem muito que se lhe diga. E pode ser fatal.

Aquele restinho de caldo que se deixava no fundo da malga, a que se juntava broa migada e, amiúde, uma pinga de vinho tinto, e que sabia tão bem no fim da refeição, como se fosse um acrescento de fartura no tempo da fome, era a "moda" ou a "modinha". E se o caldo fosse de nabos, então é que era em cheio. Dicionários e enciclopédias chamam-lhe "moado", substantivo masculino apresentado como regionalismo de origem incerta. Acredito que sim, mas em Fafe não. Em Fafe, era a "moda". Ou "modinha", como melhor se dizia no nosso carinhoso falar antigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Que perfeita ela era, a ignorância

Pro Bono
Acabou o curso, disseram-lhe que, para começar, ia trabalhar pro bono e ele rebentou de alegria. "Sou fã n.º 1 dos U2", exultou, excitadíssimo.

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu batalhava no Porto e o jornal era mandado a partir de Lisboa. Uma vez, o assunto devia ser música e pedi a ajuda, a opinião, do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe lisboeta, especialista em Big Brother. "Luís quê? Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."

Desencantei o Tozé Brito, noutra ocasião, para outro trabalho de Hércules, mas o meu chefe, outro, jornalista alegadamente encartado, também não fazia a mínima ideia de quem eles fossem, Hércules, antes dos desenhos animados e do cinema, e o Tozé Brito propriamente dito: "Esse tipo jogou onde? E o que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios da capital. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.

Outra vez, havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartunes e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento que eu pensava de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartunista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. E eu não fui.
O Sam, Samuel Azavey Torres de Carvalho (1924-1993), figura pública, nacional e internacional, nome imenso, mais do jornalismo sozinho e a dormir do que nós todos juntos e eventualmente acordados, tinha morrido já lá ia para aí uma década, mas eu preferi guardar segredo para os meus chefes, para não lhes dar desgosto, coitados. Belos tempos, aqueles. Que perfeita ela era, a ignorância!

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

No Minho, mais perto do céu

Livro das lamentações
O dinheiro não cai do céu. E é pena.

O Minho cheira a Natal, sabeis? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa aqui é o Minho, e quanto mais alto melhor. Mais dois ou três meses, e o Minho começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao frio e fechar os olhos. E eu abro e eu largo e eu fecho. A janela, a cabeça e os olhos, respectivamente. Sou pendura, graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
Ando sempre de nariz no ar, tenho talvez um lado canino que desconhecia e já começo a admitir. Farejo. Os cheiros interessam-me particularmente, orientam-me, transportam-me aos sítios. O cheiro a especiarias leva-me a Angra do Heroísmo, Óbidos cheira a chocolate, Fundão à flor da cerejeira e Vila Nova de Foz Côa às amendoeiras em flor. Fafe cheirava a sabão amarelo e Matosinhos cheira mal.
Que depressa vão os dias! Tinha razão o nosso bom padre Fraga: ainda há pouco foi Janeiro, passámos agora Agosto e já estamos no fim do ano, meus meninos. Estamos no Natal. Estamos sempre no Natal.
É. A memória também vai ao cheiro: a querida Bó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa esbotenada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, ainda assim, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, anda muito mal informado ou está a pensar nos  fogos de Verão. 
Então. Vamos lá, que são que horas! De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem da terra suada, letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados uns aos outros, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Medelo, Marinhão, Moreira de Rei, Várzea Cova, Passos logo ali em baixo, tecnicamente já em Cabeceiras de Basto, devagar se vai ao longe. Assim vamos, a Mi e eu, para não perdermos pitada. Tive tanta sorte: a minha mulher converteu-se ao minhotismo, já há muito, andamos sempre os dois ao mesmo. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Devia ser proibido alguém morrer sem ter uma mão dada e um céu assim para olhar. Olhar... e só então partir.