terça-feira, 30 de setembro de 2025

Acampado no multibanco

Duzentos e vinte e quatro
Foi julgado e condenado por ter ligado a pedir o 224. O 112 achou que era gozo, chamada falsa. A verdade é que foram mesmo necessárias duas ambulâncias.

Sabeis aquele senhor que vai à vossa frente ao multibanco e paga a água e paga a luz e paga o gás e paga o telefone e paga a tv cabo e paga a prestação do colchão ortopédico e paga a consulta do cardiologista e paga o IUC e paga o IMI e paga o IRS e paga o seguro do carro e paga as quotas da AD Fafe e da funerária e paga o lar da sogra e paga o infantário dos netos, que são seis, todos em infantários diferentes, e paga o condomínio dos filhos, que são quatro, todos em condomínios diferentes, e procura nos bolsos e mete nos bolsos e não tem bolsos que cheguem e está sempre a enganar-se e a anular e a recomeçar as operações, e, no fim, consulta o saldo, três vezes - sabeis? Calhou-me hoje um desses e não aguentei a espera. Deu-me a fraqueza, desacordei e teve de vir o INEM. Para a próxima, vou prevenido: levo cadeira, saco-cama, toldo e merendeiro.

Ó filha, se mo desses!...

Para o maneta
O povo é tolo, e manda tudo para o maneta. O Maneta aproveita, já comprou carro novo e está a fazer obras em casa. À pala.

Era uma senhora de idade, e quando digo senhora de idade quero dizer uma senhora um bocadinho mais velha do que eu, que também sou um senhor de idade. A senhora estava aflita no multibanco, à boca da rua, mesmo no centro de Fafe, e ainda por cima era quarta-feira. Que confusão! A senhora pretendia consultar o movimento da conta, a opção não se encontrava disponível, a máquina não dava talões, ela queria vir embora, sair dali, ir para casa, mas não sabia o que fazer para reaver o cartão, que continuava enfiado lá nas profundezas da ranhura, como se tivesse caído num buraco negro. A senhora pediu ajuda a quem passava e uma alma caridosa mandou-a carregar na "tecla vermelha", ela carregou, nervosa, atabalhoada, enganou-se, tornou a carregar, e enquanto isso já a máquina lhe solicitava, em alta voz, feminina e maviosa, "Por favor, retire o seu cartão!", e o Largo inteiro a ouvir. A voz solicitou uma, solicitou duas vezes, "Por favor, retire o seu cartão!", parecia que impaciente, acusadora. E a senhora, cheia de vergonha e já de cabeça perdida, respondeu-lhe no mesmo tom, em desespero de causa: - Ó filha, se mo desses!...

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Ray Charles, sem mais nem menos

A vida sem internet
Os jovens criativos da Rádio Renascença, e devem ser mesmo muito novinhos, perguntam, num anúncio de promoção a um programa: - Já imaginou a vida sem internet? E quer-se dizer: eu já, isto é, sou desse tempo, lembro-me muito bem, e por acaso até nem se estava mal...

É a minha vida. Divido-me aqui entre o computador e o fogão. Ainda há pouco, bateu-me a lembrança e larguei de repente o teclado para ir a correr lá ao outro lado da casa ver o ponto de um caldo de nabos que por acaso tenha em andamento. Trouxe de Fafe mais esta mania, o caldo de nabos. O rádio da cozinha estava a dar, sem mais nem menos, a esta hora, Ray Charles. Era, como sempre, a rádio nacional, oficial, a Antena 1, Ray Charles cantava "Hit the road Jack" e eu pensei, fazendo coro com o aparelho, "ó carago, morreu o Ray Charles, coitadinho..."
Mas não morreu, foi impressão minha. Embora me pareça que Ray Charles (1930-2004) precise de morrer todos os dias para dar na rádio. Mesmo na rádio nacional, oficial, a da necrologia e das efemérides.

É uma coisa que me chateia, pá!

Questão de feitio
Ele tinha um pé chato. O outro, não desfazendo, era uma simpatia...

O Verão Quente de 1975 entrava em brasa Outono adentro. E em Fafe também entrou, não penseis que não, e viveram-se aqui dias dramáticos, trágicos, irreparáveis, mas isso fica para outra vez. Entretanto. Era dia 12 de Novembro. Uma manifestação dos trabalhadores da construção civil convocada pela CGTP, evidentemente com o então poderosíssimo PCP por trás, na régie, por assim dizer, cercou o Palácio de São Bento, em Lisboa, e sequestrou a Assembleia Constituinte e o Governo, que também estava em casa. Durante 36 horas! O Parlamento esteve para se mudar para o Porto, mas não havia condições. O primeiro-ministro era Pinheiro de Azevedo, que, entre outros pândegos à-vontades, tinha uma relação muito franca com a língua portuguesa. Isto é, falava para a televisão e para os portugueses como se discutisse futebol ou gajas ao balcão do tasco do Chupiu, mesmo em frente ao Estádio, entornando quartilhos de verde tinto. Certa ocasião, mandou à "bardamerda" os que lhe chamavam "fascista", lembrais-vos dele assim? Pois bem. Quando o sequestro resolveu dar-se por concluído e o almirante pôde finalmente sair, disse então o seguinte, que ficou para os anais da História: "Estou farto de brincadeiras, ok? De brincadeiras, hã! Fui sequestrado, já duas vezes. Já chega! Não gosto de ser sequestrado! É uma coisa que me chateia, pá! E agora vou almoçar"... E foi.

domingo, 28 de setembro de 2025

Felizmente estou de dieta

As massas
Ele gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência.

Fiquei muito feliz quando, em 2013, a nossa dieta mediterrânica ganhou a medalha de Património Cultural Imaterial da Humanidade. O que eu gosto mais na nossa dieta mediterrânica, para além da comida propriamente dita, é do facto de se chamar dieta, o que me sossega sobremaneira a consciência, embora me faça bastante mal ao resto. Mas é dieta e temos de obedecer. Uma dieta feita, paradigmaticamente, à base de umas tripinhas com tudo, de uma vitelinha assada à moda de Fafe, de um bacalhauzinho na brasa, de um cabritinho no forno a lenha, de uns ossinhos da suã entalados entre salpicão caseiro e moiras encantadas e um naco de orelheira para desenfastiar e duas ou três costelinhas e meia dúzia de fatias de toucinho com o sal no ponto e batatas cozidas sabendo a terra e olhos de couves geadas pela madrugada e feijão vermelho da leira ao lado e, por cima desta riqueza, alho picado e azeite da fartura e do melhor, mais um tintinho honesto e de malga para molhar a palavra. Dieta cumprida, partilhada, sempre que possível, nas origens, no sítio das coisas, com porco da matança, nos velhos tascos ou antigas vendas das nossas aldeias, de Regadas a Aboim, de Fareja a Moreira de Rei, na cozinha escura, à roda da lareira de chão. Produtos frescos, locais e produzidos em sintonia com os ciclos astrais e os ritmos da natureza, como muito bem preconiza a Unesco. E eu, nestas coisas, respeito implacavelmente a Unesco.

Depois, gosto também da denominação ela própria. Património Cultural Imaterial da Humanidade. Gosto da pomposidade das maiúsculas e gosto da palavra "Imaterial", porque, pensando bem, é uma palavra que, não sendo sólida nem líquida, resvala sorrateiramente para o domínio do "Gasoso" - o que, como todos sabemos, confere...

sábado, 27 de setembro de 2025

Diálogos fafenses 29

Os médicos, as farmácias e o sistema
Fui à farmácia comprar o antibiótico. A senhora doutora farmacêutica perguntou-me:- Marca ou genérico?
- O mais barato, se faz favor. Pode ser de saldo, se tiver, ou mesmo em segunda mão, se for em conta - respondi.
Veio o antibiótico. Genérico.
- São seis euros e setenta e nove - informou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Seis euros e setenta e nove?! - espantei-me. - Mas o senhor doutor médico escreveu aqui na receita que, e passo a citar, "esta prescrição custa-lhe, no máximo, 77 cêntimos, a não ser que opte por um medicamento mais caro", e eu manifestamente não optei...
- Pois, mas não ligue a isso. É o que eles têm lá no sistema. O preço muda ao fim de três meses - disse-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a receita é de hoje, fresquíssima - atalhei.
- Pois, mas é o sistema - reiterou a senhora doutora farmacêutica.
- E o sistema não é o mesmo para as farmácias? Entre 77 cêntimos e seis euros e setenta e nove vai uma diferença de quase dez vezes mais, como é que isto é possível? - inquiri e tornei a inquirir.
- Faça o favor de ver aqui no computador. Na verdade há mais barato, este de três euros e quinze, mas que hoje, por acaso, até já custa cinco euros e trinta e sete, e não temos - explicou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a custar 77 cêntimos é que nada - insisti.
- Nem de perto nem de longe, é o sistema - insistiu, por seu lado, a senhora doutora farmacêutica.
- E os senhores doutores médicos sabem? - eu.
- Sabem, sabem - a senhora doutora farmacêutica.
- Desculpe voltar ao mesmo: mas então porque é que os senhores doutores médicos escrevem estes preços nas receitas, se sabem que estão a enganar os doentes?
- É para pressionar as farmácias - segredou-me a senhora doutora farmacêutica, chegando-se-me ao ouvido.
- E tem resultado, não tem? - devolvi-lhe eu, no mesmo tom confidencial...

Com estas e com outras, deram-me saudades do Quinzinha da Farmácia. Do Quinzinho da Farmácia Moura e do Sr. Moura propriamente dito, que também tinha uns óculos muito pândegos e parecia uma figura dos filmes da Walt Disney para crianças. Ainda por cima, o bom do Sr. Moura, que morava por cima do estabelecimento, na Rua Montenegro, atendia durante a madrugada, se lhe tocassem à campainha para acudir a uma aflição inopinada, no tempo em que não havia farmácias de turno nem intercomunicadores ou videoporteiro. Com aquele aspecto de velhinho precoce, velho sábio, feiticeiro, alquimista, o Sr. Moura assomava ao patiozinho do 1.º andar, informava-se do que era, descia as escadas em chinelos de quarto ou enfiado nos sapatos três números acima, com o pijama a espreitar por baixo das calças vestidas à pressa e às vezes embrulhado no roupão, só lhe faltavam a cadeia na mão e o barrete de dormir, resmungava por todos os lados, mas, a verdade é só uma, salvava o povo. E essa é que é essa.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A invenção do pecado original

O fim do Inferno é mau para o negócio
Evidentemente o Inferno não existe. O Papa Francisco tinha razão quando o declarou, em Março de 2018, e se calhar ouviu-me ou leu-me antes, não sei quando nem onde. Mas a Igreja - que se apressou a desmentir o chefe, dizendo que ele não disse o que disse - não pode admitir semelhante franqueza: porque o Inferno é a bomba atómica do catolicismo. Sem Inferno, o que é que a Igreja em sotaina tem para ameaçar ou dissuadir os seus fiéis? "Olhai, amai-vos uns aos outros", algo assim? Seria de rir, se não fosse obsceno. Para além disso, o fim do Inferno é mau para o negócio.

Era o baptizado de uma querida sobrinha, bebé, na Igreja Nova, em Fafe, já lá irão três décadas. Era dia de festa. Dia de sol, generoso, aquele sol de Fafe, aberto, puro, claríssimo, a cheirar a vitela assada e, evidentemente, a sabão amarelo. Mas. Não sei porquê, talvez só para estragar o ambiente, o padre estava particularmente endiabrado, embora ainda fosse manhã, e à beira da pia, logo quem entrava, no lado esquerdo, rodeado por nós todos, padrinhos e família, resolveu embirrar com a criança de meses, coitadinha, acusando-a de ser uma perigosa pecadora derivado ao princípio da Bíblia, mas que ali, com uma pouca de água, ficaria de folha limpa, graças a ele e sorte a dela, e inferno acima e inferno abaixo e pecado original acima e pecado original abaixo. Isso, no pecado original é que o raio do padre batia e tornava a bater, como se batesse no ceguinho.
Zanguei-me. Olhei fixamente para o padre, varei-o com os olhos, fiz-lhe cara feia, abanei que não e que não com a cabeça, ele percebeu que eu lhe estava a dizer "com pecado esta criancinha, este anjinho recém-nascido?, mas alguém nasce já com pecado?, estamos na Idade Média ou quê?", percebeu e mudou de assunto.

Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, escreveu um interessante artigo de opinião no DN, em Dezembro de 2023. Para mim, as opiniões de Anselmo Borges são sempre interessantes e amiúde inspiradoras, e o artigo em questão, cuja leitura na íntegra recomendo, chamava-se "A Imaculada Conceição, o pecado original e o sexo".
Deixemos a virgindade de Maria, o casamento e o sexo para segundas núpcias e centremo-nos no meu ponto. Ora bem. Eu não lhe encomendei o sermão, mas o mestre da Universidade de Coimbra ensina, a dado passo do seu texto: "Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os "primeiros pais", colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar? Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado".
O baptismo, afirma Anselmo Borges, "não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus."
É fácil de perceber, parece-me. Porque, se "toda a criatura recém-nascida vem de Deus", ainda seguindo o raciocínio do padre-filósofo, e eu acredito que vem, como pode alguém nascer com pecado, com defeito? E pronto, já somos pelo menos dois a pensar assim.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Diálogos fafenses 28

Conversa de mulheres
- E eu disse-lhe: foi assim, assim, assim...
- Disse?
- Disse.
- Não me diga...
- Disse.

A Póvoa agora é em Fafe

Vá ver a neve, antes que ela apareça
A melhor altura para ir ver a neve à serra da Estrela, acho eu, é agora, no Verão, se possível em pleno Agosto, quanto mais sol, melhor. Não há neve, mas pode-se passar.

É extraordinário o que se passa em Fafe por estes dias. Finalmente sem precisar da Póvoa de Varzim para nada, quem havia de dizer, Fafe tem a sua própria época balnear, de papel passado, reconhecida pelo notário, anunciada em edital, com bandeira e diploma, talvez até com batata frita à inglesa, bolas de Berlim, língua da sogra e caladinhos, nadadores-salvadores, mirones, pedintes e carteiristas. Serviço completo. Que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide e dava na televisão, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves da concorrência, sem lhes ficar atrás. Que sainete! Foi preciso esperar pelo século XXI, aguentar pacientemente as patifarias das alterações climáticas, inclusive correntes de ar, mas valeu a pena: Fafe está realmente mais fresco.
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, uma praia com mar e tudo. E a verdade é só uma. Não foi o nosso Nelo, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a praia da Barragem de Queimadela, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, aberto ao expediente e em glorioso funcionamento. O nome "de Queimadela", para praia, se calhar não será o mais feliz, o mais acolhedor, por assim dizer, antes pelo contrário, mas, pronto, já constava, vinha de trás e, portanto, não havia volta a dar, esqueçamos o pormenor. Qualquer dia, estamos mas é a receber camionetas de poveiros, que vêm à procura do que é bom.
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, em Docim, o Comporte, na Fábrica do Ferro, e Calvelos, em Golães, pelos campos de Sá, atravessando a linha do comboio. Eu e os rios éramos unha com carne. O rio São Roque, no Poço da Moçarada, explorando montes e leiras, com as suas belas cachoeiras e penedos polidos pela apressada e antiga passagem da água, foi onde aprendi a nadar, a fumar e várias outras parvoíces, mas nunca tive coragem para me atirar sequer do "segundo penedo", quanto mais do "terceiro", lá nas alturas do céu. O rio Ferro, mais à mão, no Comporte, secando ao sol no pequeno areal junto ao pontão que ligava ao Bairro de Antime. O rio Vizela, em Calvelos, uma curva selvagem, escondida no meio de impenetráveis milheirais, silvedos jurássicas e outra vegetação manifestamente africana, eu, palavra de honra, ouvia batuques ao longe e via macacos saltando de choupo em choupo, como se fossem artistas de circo, trapezistas voadores evadidos da Feira Velha. Três oásis que eu, na minha boa fé ou ingenuidade infantil, supunha longínquos, praticamente inacessíveis e secretos. Sítios de banhos, puros e duros, sem facilidades, só para homens de barba rija. E nós, os putos, sorrateiramente desenfiados, lingrinhas de pé descalço e pila ao léu, autoprojectos assumidos de futuros ecoturistas, hippies sem sequer fazermos ideia, íamos para lá treinar para a Póvoa de que ouvíamos falar, porque algum dia havia de ser. O pior era a minha mãe, que parecia que tinha radar e, uma desgraça nunca vem só, sabia sempre por onde é que eu andava e o que fazia. E, portanto, ia-me buscar. Pelas orelhas. Eu chorava e prometia que nunca mais, pelo menos até à tarde do dia seguinte.
Eu sou, aliás, especialista em épocas e instalações balneares. Não ouso colocar Fafe no topo da lista nacional de estâncias termais, seria porventura um exagero, e eu não sou disso, mas a verdade é que conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária. Três ou quatro anos depois, quando o Estádio começou a ser construído, nas vésperas da década de setenta, os vestiários foram provisoriamente montados na cave do quartel dos Bombeiros e eu passei a ser freguês diário do Senhor Zé Manquinho, o roupeiro dos roupeiros, numa amizade sem fim. Como decerto sabeis, eu era neto do quarteleiro, estava sempre ali de plantão, era só descer as escadas. Nas férias do seminário, não tínhamos água quente em casa, e era no balneário da AD Fafe que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Levava toalhão, sabonete e roupa interior para mudar. Por sugestão do Senhor Zé Manquinho, eu era conhecido nas catacumbas como "o homem que adormece no chuveiro", tamanho era o prazer que o duche me dava e o tempo que eu lá passava, debaixo de água, nem sei como é que nunca engelhei. Era uma espécie de Homem da Atlântida ou Aquaman, mas às pinguinhas.
Com o banho, eu tinha direito a uma bebida. Isto é, não tinha direito a bebida nenhuma, mas fazia-me e ela. Inventava um ligeiro afrontamento, queixava-me de uma pontada de azia, e o Senhor Zé já sabia. Mandava-me esperar pelo João Americano, o massagista, o único que tinha a chave da "Farmácia", palavra escrita a esferográfica azul no adesivo colado na testa do pequeno armário branco e vidrado com três prateleiras que era a própria "Farmácia" e pouco maior do que uma mesinha-de-cabeceira. O João chegava da fábrica, gozava comigo, falava muito alto, esganiçado, parecia a cantadeira de um rancho folclórico, mas também já sabia: dava-me um copo de água com uma colher de "sais de fruto", Eno, se bem me lembro, eu adorava aqueles piquinhos, bebia regalado, uma, duas goladas sem deixar cair, arrotava com toda a categoria e, boa tarde e muito obrigado, estava pronto, estava feito.
Admito que foi ali que o João Americano, o Senhor Zé Manquinho e eu inventámos o spa com champanhe, conceito hoje em dia tão coisa e tal, mas evidentemente não sabíamos.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Animais de tiro... e queda

O peito às balas
Um dia ele resolveu dar o peito às balas. Que descanse em paz.

Animal ou besta de tiro: animal que puxa um carro, na definição simplificadora do dicionário. Ou, desenvolvendo um bocadinho, animal utilizado como tracção para o transporte de pessoas e mercadorias, aparelhos agrícolas como, por exemplo, o arado, ou como motor de noras e moinhos. Chamam-se em Espanha moinhos de sangue.
Os principais animais de tiro são os cavalos, as mulas e os burros, os bois e as vacas, os ónagros, os camelos e dromedários, os iaques, os búfalos de água, os lamas, os alces e as renas do Pai Natal, os elefantes, as avestruzes e... os cães. Os cães: que antigamente tiravam só praticamente no Alasca e para o cinema, e agora, no Parque da Cidade, também puxam por jovens ciclistas e skaters radicais e manifestamente preguiçosos.

Outros animais de tiro, mas por diversa razão, são, aqui que ninguém nos ouve: o coelho-bravo, a lebre, a raposa e o saca-rabos; a perdiz-vermelha, o faisão, o pombo-da-rocha, o gaio, a pega-rabuda e a gralha-preta; o pato-real, a frisada, a marrequinha, o pato-trombeteiro, o marreco, o arrabio, a piadeira, o zarro-comum, a negrinha, a galinha-d'água, o galeirão, a tarambola-dourada, a galinhola, a rola-comum, a rola-turca, a codorniz, o pombo-bravo, o pombo torcaz, o tordo-zornal, o tordo-comum, o tordo-ruivo, a tordeia, o estorninho-malhado, a narceja-comum e a narceja-galega; o javali, o gamo, o veado, o corço e o muflão. Em Fafe, também, por princípio ou mera distracção, sinais de trânsito e placas indicativas de localidades.
Para não saberem que vão morrer, a estes animais de tiro chamam-lhes espécies cinegéticas. É preciso que se note que o melro saiu da lista dos abatíveis em 2011, por ordem de Daniel Campelo, o do queijo, então secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural. Uma medida que seguramente marcou um extraordinário mandato, posto que breve.

Já os caracóis são obviamente animais de tiro porque puxam pela própria casa, andam com a rulote às costas (o que não acontece com as primas lesmas, essas viscosas sem-abrigo e nudistas descaradas), mas, pelos vistos, gostavam de ser ainda mais. Em 2015, uma campanha em nome destes simpáticos moluscos gastrópodes terrestres foi lançada pelos seus representantes legais, uma rapaziada bem disposta que sobretudo não quer que eles, os caracóis, sejam cozidos vivos. Seria, portanto, de lhes enfiar um balázio na cabeça, aos caracóis como aos garranos que invadem estradas, e, então sim, metê-los na panela. Aos caracóis.
Com a coitada da lagosta é que ninguém se importa. Se calhar por ela ser podre de rica e pelar-se por uma sauna bem suada. Invejosos de merda...

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Os Dalton eram da claque

Domínio de bala
Apertado, o adversário disparou à queima-roupa e ele, cheio de classe, dominou a bala com o peito e rematou de bicicleta, deixando-se cair. Golo!, gritou o estádio de pé, em comovido delírio. Foi realmente um funeral muito bonito.

Os irmãos Dalton eram oito, quatro de cada vez. Começaram por ser Bob, Grat, Bill e Emmet, mas morreram, faz de conta, e foram substituídos pelos primos mais à mão, os impagáveis Joe, William, Jack e Averell. Estes quatro eram bastante filhos da mãe, da Mãe Dalton, vestiam-se às risquinhas amarelas e pretas como se fossem uma extravagante claque da AD Fafe, deslocavam-se em escadinha, sempre do mais pequeno para o maior ou vice-versa, e Lucky Luke fazia-lhes a vida negra.
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar os cosméticos Dalton, marinhos segundo dizem, Dalton Trumbo, tão excelente quanto controverso romancista e argumentista norte-americano, Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan (1925-2024), famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton, evidentemente para não se confundir com a Lei de Ohm.

Ó Fátima, adeus!

O preço da fé
No tempo em que a fé era de graça, copo e vela dez tostões. Isto em Fátima. No Pérola Negra, copo e bela um conto e quinhentos.

Outro dia, nas cerimónias de Fátima, vi pela televisão e nem queria acreditar. Um sacerdote a fazer um sinal da cruz tão aldrabado, tão aldrabado, que, se a minha mãe o visse naqueles atabalhoados preparos, o mais certo era enfiar-lhe duas ou três lamparinas bem assentes. Um padre, e ainda por cima no altar, no altar do mundo, a dar o mau exemplo, a gatafunhar um sinal da cruz como se fosse jogador de futebol entrando em campo. Só faltou fazê-lo três vezes a trezentos à hora, destrambelhadamente, e depois beijar o dedo ou o pulso, levantar e assoar-se à sotaina e apontar para o emblema, para o Sagrado Coração de Jesus. Bem sei que a Igreja portuguesa anda um bocadinho nervosa derivado a isso da pedofilia e outros abusos, mas, valha-me Deus, é o nosso santo-e-senha, é o sinal da cruz...

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Diálogos fafenses 27

Desce, desce, balão, desce
- Ó patego, olha o balão! - alguém disse.
- Aonde?, aonde?... - perguntou o patego. 

Em nome do Pai, do Filho e de Mim

Foto Tarrenego!

O auto-suficiente
Beijo-me e desejo-me - dizia.
 
Entram em campo. Jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, apanha-bolas, tratadores da relva, stewards, polícias fardados e à paisana, navalhistas, maqueiros, carregadores de bandeiras, repórteres de pista, vendedores de pirolitos, e até o presidente da Câmara, com uma grandessíssima lata, para dar o pontapé de saída. Todos se benzem como se entrassem em sítio santo, circunspectos, cândidos e amorosos, e no entanto vão passar quase duas horas a, pelo menos, chamarem-se "filho da puta!" uns aos outros, como o Senhor nos ensinou. Fazem o sinal da cruz antes da função, para que dê sorte, para esconjurar azares ou, sei lá eu, talvez porque não fazem ideia nenhuma do que aquilo quer dizer. Pelo sim e pelo não, sinal da cruz em versão resumida, "Em nome do Pai", mão direita na testa, "do Filho", mão no peito ou barriga, "e do Espírito", mão no ombro esquerdo, "Santo. Amém", mão no ombro direito. Tudo mais ou menos como se aprendia na catequese. Exactamente, benzem-se. Mas depois acrescentam-lhe um beijinho na mão propriamente dita, no pulso, no dedo, fazem coraçõezinhos para a televisão, apontam para o céu, metem a bola na barriga, espetam bandarilhas, fazem mil e uma macaquices, benzem-se e beijam-se em seu nome pessoal, autobeijam-se, uma vez, duas, três, que desperdício mas foi a conta que Deus fez, num narcisismo sem jeito, numa espécie de egolatria canonicamente desautorizada, onanista, para não lhe chamar outra coisa.
Todos. Não passam sem a chupadelazinha no dedo, que - perdoai-me que vos diga - vale tanto no Céu como a entrada em campo com o pé direito. Deus está realmente à coca, tudo vê e tudo sabe, mas vê pouco futebol e também é Pai do pé esquerdo.
E não é só no futebol. Mesmo nas igrejas, onde o rigor deveria imperar, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração, e os frequentadores de hoje em dia até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal da cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para os fiéis e para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê, entregava a galheta, tocava a sineta e segurava a patena.
Parece que ainda ouço. As igrejas ecoam, sabeis? O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Deus Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço - lá em cima que se entendessem. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e vinha a Fafe às inaugurações e aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva e papuda, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português, tirando o Agnus Dei. E se o senhor comendador fazia, e fazia que se soubesse, é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, mas estais a ver a confusão que dali saiu? Agora beijam a mão, batem no peito, soltam um ou dois palavrões e assoam-se à camisola, amém.

Quer-se dizer. António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante doze anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Vinha realmente muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais da situação fascista. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos e é o imponente cidadão mais à esquerda, salvo seja, lá em cima no retrato, acompanhando de olhos revirados uma das visitas do ministro Baltazar Rebelo de Sousa aos Bombeiros da nossa terra. O pai do Presidente Marcelo é o segundo a contar da direita, o de óculos. Atrás, há por ali algumas caras da minha meninice que me trazem imensas saudades.
E já agora: a reforma da missa católica aprovada no âmbito do Concílio Vaticano II (1962-1965) foi publicada no dia 5 de Novembro de 1970 e virou o padre para o povo. Hoje em dia não se nota muito, mas foi assim que as coisas se passaram.

domingo, 21 de setembro de 2025

Diálogos fafenses 26

Ignorância envernizada
Eram um casal e o filho, a rondar os onze anos, e saíam do restaurante depois de jantar.
- Queres ir? - pergunta a mãe, urbana e meiga?
- Aonde? - diz o miúdo.
- Não se diz aonde. É onde. Estou farta de te dizer - corrige a mamã, instantaneamente ríspida, e a conversa acaba logo ali.
É. A ignorância envernizada cuida que o aonde é um regionalismo, um parolismo. E os doutores da mula ruça, como não sabem por onde lhe devem pegar, pegaram nele e enfiaram-no no baú dos falsos arcaísmos. Mas o menino falou bem. E a mãe corrigiu mal. Depois entraram no Mercedes.

sábado, 20 de setembro de 2025

Coisas do género

Alice Cooper e Vieira da Silva, os nomes, bem me enganaram durante anos. Felizmente soube a verdade ainda em Fafe, muito a tempo de não fazer figuras tristes por esse mundo fora. E então ri-me.

Figos de seira baixa

Fruta da época
Era Dezembro. Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri.

Consta que existem no mundo mais de 750 tipos de figos, entre os quais os nossos muito apreciados preto de Torres Novas, lampa preta, pingo de mel ou roxo de Valinhos, por exemplo. Há figos verdes, vermelhos, amarelos, roxos ou pretos. Há figos lampos ou temporãos, os que amadurecem mais cedo, habitualmente entre Maio e Julho, e figos vindimos, que se aprontam mais tarde, entre Agosto e o início do Outono. Há figos frescos e figos secos. E havia figos de seira alta e figos de seira baixa. Pelo menos em Fafe.
A seira é um cesto ou saco de esparto, onde se deita a azeitona depois de moída, para a espremer, ou onde se guardam ou levam pregos, ferramentas ou figos. As seiras com figos, geralmente frescos, eram carregadas à cabeça das antigas vendedeiras para mercados e feiras, ou de rua em rua, com velhos pregões a condizer. E também iam de burro, três ou quatro seiras de cada lado do lombo, julgo ainda ter visto esta cena uma ou duas vezes, à porta dos tascos do Zé Manco e do Paredes, e nestes casos seriam seiras com figos secos. Os figos transportados lá no topo das senhoras e em cima dos jericos eram, para nós, "figos de seira alta". Por outro lado, havia os "figos" que os burros iram largando naturalmente pela retaguarda, primeiro frescos, fumegantes, e depois secos, com o tempo, e esses, na nossa terra, naquela época, eram "figos de seira baixa"...

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

O homem que se esqueceu de dizer virilhas

Se um elefante...
- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

O homem que se esqueceu de dizer virilhas sou eu, passe a imodéstia. Por razões que não vêm agora ao caso, mas eram boas, houve uma larga temporada nos últimos anos em que eu precisei de usar assiduamente a palavra virilhas. Ora acontece que, quando a queria dizer, ela - a palavra, essa mesma, virilhas - não havia maneira de me sair, geralmente varria-se-me da memória, e nem sequer posso alegar que a tinha na ponta da língua, porque isso também não é coisa que se diga. Nessas delicadas ocasiões, vinham-me à cabeça a palavra narinas, sempre gostava de saber porquê, a palavra testículos, evidentemente, e a palavra ínguas, sobretudo a palavra ínguas, que emergia do meu antigamente fafense e parecia-me que andava por lá perto. Mas virilhas é que nada. E eu ficava envergonhadíssimo.
Que se segue: contei aos meus amigos a aflição deste estúpido bloqueio, e um diz-me: - É normal na tua idade. Sou mais novo e tenho às vezes o mesmo problema, mas com a palavra pevides. Não é grave.
Não é grave, vírgula - isto já sou eu outra vez. Porque não se pode comparar virilhas com pevides. E pevides de quê? Pevides secas ou frescas? Nacionais ou importadas? Para aperitivo ou sementeira? Por outro lado, quando eu precisava da palavra virilhas era geralmente para a dizer a senhoras. E, na angustiante ausência da palavra, acabava por acudir-me das mãos, do gesto e do sítio para conseguir explicar-me. Estais a ver onde me agarrava? E achais isso bonito?...

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

O enchousado

Advérbios
- Sobretudo ou principalmente?
- Com este frio, sobretudo!

O indivíduo de triste figura, enfezado, talvez torto, talvez sujo, talvez faminto, acabrunhado, macambúzio, encolhido, atafulhado de roupa desaparelhada, quatro pares de calças, três casacos, dois sobretudos e uma gabardina, como se fosse um guarda-vestidos ambulante, como se tivesse acabado de assaltar uma loja de vestimentas velhas e invernosas - esse, assim nestes preparos, estava enchousado, era enchousado. Enchousar, o verbo, pode também querer dizer espancar, sovar, bater em. E confere. Para isso servem os pobres enchousados, para sacos de pancada.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Diálogos fafenses 25

Pontos de vística
- O caro amigo desculpe, mas está completamente errático...
- Pelo contrário, ó ilustríssimo: estou absolutamente cértico.

Era um artista português

Alma de poeta
Tenho dentes sensíveis, disse-me o dentista. É a minha alma de poeta.

Esqueçamos por momentos as eleições, o futebol e outras guerras. Puxemos à memória aquele extraordinário anúncio da televisão a preto e branco com um homem (africano do Império, por sinal) a abocanhar uma cadeira e a fazê-la andar à roda acima da cabeça como ventoinha de helicóptero. Um enorme sucesso sempre que dava no café Peludo, que era onde se via TV. E pensando bem, chamar-lhe anúncio até acaba por saber a pouco: aqueles 20 segundos eram todo um programa de variedades e talvez manifesto político, mas isso agora não vem aqui ao caso. Aquilo é que eram dentes fortes, gengivas sãs, boca saudável! E tudo porquê? Porque o artista era um artista português e usava Pasta Medicinal Couto.
Eu, que sou dos tempos áureos do Restaurador Olex, também usei a Couto durante mais de um quarto de século, julgo que inicialmente "receitada" pelo extraordinário Quinzinho da Farmácia, o "médico" dos pobres de Fafe, o melhor médico de família que Deus ao mundo botou, ainda os médicos de família não tinham sido inventados. Aquela coisa de ser "Medicinal" no nome do meio também me convencia, tenho de confessar, e só a larguei após sucessivas tentativas falhadas para fazer sequer mexer uma cadeira de plástico com os dentes e depois de ir ao dentista pela primeira vez na vida, aos 45 anos.
A Couto nasceu no Porto há 93 anos, quando não era natural um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha. A primeira fórmula da "Pasta Medicinal" foi registada a 13 de Junho de 1932, por Alberto Ferreira Couto e um amigo dentista. O novo produto prometia não só lavar os dentes, mas também, tomai nota, protegê-los dos malefícios da sífilis, reduzir os casos de infeção gengival e limitar o fenómeno crescente da retração das gengivas. Em 2001, por imposição das normas comunitárias relativas a este tipo de artigos, a marca foi obrigada a deixar cair a tão sedutora quanto conveniente designação de "Medicinal", passando a chamar-se simplesmente Pasta Dentífrica Couto. Até hoje.
Em 2012, o então principal accionista da empresa Couto, em Vila Nova de Gaia, anunciou que tinha dois pretendentes à compra da marca. Um da área da cosmética e outro do sector farmacêutico, ambos com intenções de "aumentar mais as vendas". O negócio deveria ser fechado até 2017. Não sei se foi, desinteressei-me do assunto. Mas também hoje em dia as cadeiras são muito mais leves...

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A polinheira e a trepa

Um par de estalos
Os estalos são como os óculos, as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, as alianças e até os cornos. Usam-se aos pares.

Uma polinheira era uma tareia, uma sova, uma surra, uma tunda, uma coça, um enxerto, um enxerto de porrada perpetrado amiúde com uma vara ou fustiga, às vezes com um cinto e habitualmente de mãos estremes, ou até com o pé que estivesse mais à mão. Quer-se dizer, uma polinheira era uma trepa, que deve ler-se e dizer-se "trépa" e, neste caso, também podia significar folho de vestido. Polinheira e trepa, palavras nossas, antigas, questão cultural, do tempo em que o povo era muito honrado, um povo que dava, dava muito, dava tudo, era gente pobre mas de mãos largas, até dava polinheiras e trepas, dava porrada de criar bicho, era uma fartura, graças a Deus. E quem recebia, levava. Levava polinheiras, levava trepas, sempre pela medida grande, levava até para tabaco, mesmo que não fumasse, era o pão nosso de cada dia. Polinheira e trepa eram palavras com muito uso e imensa prática, no nosso Minho, em Fafe, metidas a cotio por uma questão de princípio, porque "quem dá o pão, dá a educação". E educar era bater. E aprender era levar, consoante o ponto de vista. Em casa, na escola e até na catequese, porque a pancada, naquela época, era como Deus nosso Senhor - estava em toda a parte.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O capacete antes de deitar

Isto das idades realmente
O quarentão é a média de todos nós. O cinquentão começa a desconfiar da vida. O sexagenário passa a constar das notícias. O septuagenário anda em contramão na auto-estrada. O octogenário é porque se safou no acidente. O nonagenário quer que os quarentões, os cinquentões os sexagenários, os septuagenários e os octogenários se fodam e refodam. O centenário só se realiza de cem em cem anos, e está certo.

Sempre gostei de me deitar no chão. Desde pequenino. O Verão em Fafe é um forno, e a nossa mãe punha-nos a dormir a sesta no chão da casa, não no chão estreme, mas por cima de um cobertor fininho e fofo, e dormíamos como anjos de barriguinha ao léu. Porque o ar rasteiro é mais fresquinho, está provado cientificamente, e a nossa mãe sabia também disso, embora nunca tivesse ouvido falar de correntes de convecções, fluidos, átomos ou moléculas.
Habituei-me. Sempre que pude na vida, dormi a minha soneca no chão do campo, do monte e até da praia, se pela fresca da manhã e com a praia só para mim. Casei e fui morar para a Foz, no Porto: a casa dos meus sogros tinha um quintal-jardim que era um mimo, e era ali que eu me estendia, no cimento do caminho ou na relva do coradoiro, em tardes e noites de suar em bica. Depois bebia uma ou duas garrafas de espadal bem fresquinho, e já estava em condições de ir para a cama...
Agora, moro há mais de trinta anos em Matosinhos, com o mar a passar-me à porta e a enrolar na areia, mas custa-me muito a deitar, ainda por cima no chão, que me fica cada vez mais longe, e preciso de um guindaste aqui do Porto de Leixões para me levantar. Mas não resisto: de quando em quando, dá-me para a toléria - é a idade -, ponho o capacete e, em quatro ou cinco movimentos muito complicados e perigosos, às vezes doze, consigo deitar-me no chão da sala, com muitos ais! e muitos uis! pelo meio, os ossos rangendo, a cabeça a ourar e a televisão ligada só para que o som me faça companhia e me disfarce os queixumes. Às tantas a Mi entra, assusta-se comigo ali esparramado no lamparquet com vinte anos de garantia e grita: - Ai, valha-me Deus, que ele morreu, coitadinho! Que é da motorizada, homem?...
E eu, de olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito, só me falta o terço: - Chama mas é a polícia, mulher, que a culpa foi do outro...

Moral da história: este frio, será do tempo?

domingo, 14 de setembro de 2025

Vós não sabendes nada!

Gaba-te cesta
Era um homem muito antigo. Falavam-lhe em gigas e ele imaginava cestas...

Uma rapariga da minha idade, isto é, uma "idosa", descendo a Arcada em direcção ao Mário da Louça se ainda houvesse, em passeio, de braço dado e discutindo alegremente com o neto, moço com ares de universitário repetente e bem disposto, os dois perdidos de riso. Quadro bonito. Flagrante exemplar da harmonia familiar e do eterno conflito de gerações, a sabedoria dos antigos contra a ignorância de hoje em dia. E diz ela, toda despachada e gramatical, aritmética, falando para o rapaz, sim, mas sobretudo para o redor, para quem a quisesse ou não ouvir, e suspeito que especialmente para mim, que lhe pareço de igualha e vou em sentido contrário, apontado à memória do Américo das Bicicletas: - O quê? Eu até sei as letras romanas, quanto mais! Vós agora é que não sabendes nada...
E realmente.

Agora, uma revelação. O Sr. Américo das Bicicletas, que eu conheci muito bem, era, se não me engano, padrinho do meu padrinho e tio Américo. O que quer dizer que o Sr. Américo das Bicicletas era praticamente meu padrinho-avô, e eu nunca tinha pensado nisso, o que é extraordinário. Pensei hoje, agora, sem mais nem menos, ou por causa dos números romanos, e fiquei muito feliz. Porque eu gostava muito da figura do Sr. Américo das Bicicletas.

sábado, 13 de setembro de 2025

E viva o velho!

Quando for pequeno
"Quando for pequeno, quero ser palhaço e astronauta", disse o ancião, sonhador e triste. Com efeito, aquela sociedade funcionava às arrecuas: nascia-se velho e morria-se a chupar no dedo. Era naturalmente governada por garotos.

Estou mortinho que chegue o Dia Mundial da Terceira Idade, dia dos nossos velhinhos, coitadinhos, nem que tenha de ser antes. Que festa tão bonita! Levantar cedo, roupinha de domingo, pó de talco e perfume, chá e bolachas e ala para a camioneta, nem que não queiram. Lá vão os nossos velhinhos de cu tremido, cantando bonitas cantigas do Quim Barreiros ditadas ao microfone pela senhora doutora da Junta, que até já foi ao Preço Certo e agora é candidata. Missinha, santa missinha, um regalo, nem que não queiram, e Quinta da Malafaia para enfartar a mula, nem que não queiram, tantos velhinhos, tantos velhinhos, ó que extraordinário velhódromo, velhinhos de tantos lados, atordoados, perdidos, sem saberem de que terra são, tantos senhores presidentes de câmara, sorridentes e abraçadeiros, de mesa em mesa, e os fotógrafos solícitos e oficiais sempre atrás, acotovelando-se, ai que dinheiro tão bem empregue pelo orçamento municipal, vêm aí as eleições! Os velhinhos sobreviventes, nem que não queiram, regressam ao sol-pôr com o saco cheio, nem sempre entregues na terra certa. De volta à naftalina, à indiferença e ao esquecimento, até daqui a um ano, se Deus quiser.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A côdea e o côdeas

O bem-mandado
Mandaram-no ir chamar nomes a outro. E ele foi.

Côdea é a parte exterior endurecida de algo, do pão, do queijo, das árvores. É a casca, a crosta, a tona. Côdea pode ser pequena refeição ou merenda de ovos fritos com farinha, molhados em mel, entre o almoço e o jantar. Côdea é pão, pão duro, porção pequena e insignificante de comida, ou por outra, comida reles e em diminuta quantidade, um nico, um cibo. Côdea é nódoa, camada exterior de sujidade ou coisa de nada. É pedaço, bocado - "uma côdea de sabão para lavar as mãos". É pagamento miserável - "trabalho 12 horas por dia e o patrão dá-me uma côdea". O plural de côdea é côdeas, e muda do feminino para o masculino. Côdeas é uma pessoa muito pobre, pobretão, um homem sujo, um indivíduo grosseiro, um labrosta, um carroceiro. Em Fafe, antigamente, chamar côdeas a alguém era insulto do piorio, ia fundo no carácter. Ser côdeas não era só aspecto, tinha mais a ver com o asseio moral. O côdeas, o verdadeiro côdeas, até podia andar sempre muito limpinho, mas, por dentro, não deixava de ser um indivíduo asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil, mesquinho. O côdeas era um bandalho, um pulha, um bardamerda, um filhodaputa. No insultómetro da nossa terra, um côdeas, um verdadeiro côdeas, estava ao nível do moncoso e do ranhoso, mesmo até do piolhoso. Portanto, estais a ver...

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Às carreiras

O dorsal
O dorsal chama-se dorsal porque é para usar ao peito - ou, vá lá, na barriga do atleta. Se fosse para usar nas costas, isto é, no dorso do atleta, chamar-se-ia peitoral.

A carreira era a camioneta, o autocarro, o transporte colectivo, público, prestado por empresas privadas. Para Guimarães, para Felgueiras, para a Póvoa de Lanhoso, para Várzea Cova, para a Gandarela. Eram a Mondinense, a João Carlos Soares, a Landim e a Ferreira das Neves, que me lembre. E tínhamos a "Empresa". Carreira podia também ser fila, fileira, linha, alinhamento. Mas era sobretudo corrida. Isso, em Fafe e pelo menos nas zonas de Basto aqui à beira, carreira queria dizer corrida. Dar uma carreira, ir às carreiras, era correr, era ir a correr. Até rebentar! Até cair de cangalhas...

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma passagem de nível

Como quem entra no céu
Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água benta que não 
encontrou, genuflectiu e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Fafe já teve passagem de nível. Em Santo Ovídio, mesmo no meio da estrada, era a nossa única passagem de nível, magnífica, sem rival, e por isso chamava-se "a" Passagem de Nível, porque Fafe naquele tempo era sobremaneira isso, uma extraordinária terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, o Bairro, a Quelha, o Santo, o Colégio, o Rio, a Poça, a Rampa, o Posto, a Empresa, o Hotel, o Bar, o Snack-Bar, a Pastelaria, o Palacete, o Cinema, o Grupo, a Fábrica, a Cantina e, cá está, a Passagem de Nível.
A singularidade, de resto, nunca me incomodou, antes pelo contrário, simplificava-me a vida, mas esta coisa de Fafe ter só uma passagem de nível na sua história, uminha, e não haver notícia de mais, antes e agora, numa cidade tão dada à cultura, às letras e à publicação literária, é que me surpreende. Em Fafe, os livros saem ao ritmo das cerejas, e dos tremoços, uns atrás dos outros, o que é de elogiar, e no entanto não se sabe, nunca mais se soube que por aqui tivesse aparecido o tal parágrafo perfeito, o trecho extraordinário, a tirada sublime, o fragmento de classe, a amostra de gabarito, quatro linhas de excepção, duas ou três frases lapidares e eternas, dúzia e meia de palavras genialmente concatenadas e dignas de registo, enfim, outra passagem de nível. Não. Nada. Nadinha. E eu, sinceramente, dá-me um certo desgosto...

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Bagatela...

Allegro ma non troppo
Deu-lhe um bach, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

Bagatela. Coisa sem valor, ninharia, insignificância, frivolidade ou, por outra, tabuleiro do chamado "bilhar chinês". Na música, bagatela é uma peça curta, ligeira e despretensiosa, típica do Romantismo, normalmente para ser tocada ao piano. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas colossais miniaturas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Em Fafe, bagatela era também resposta na ponta da língua como opinião acerca disto ou daquilo, exprimindo um certo desconsolo ou desconforto, é certo, mas dentro dos limites da educação e da caridade cristã. - E este vinhinho, hã?, que tal? - perguntava-se. E se o vinho não era realmente grande espingarda e não se queria passar por parvo nem por falso ou mal-agradecido, então respondia-se diplomaticamente: - Bagatela... 
Bagatela, assim com reticências e um sorrisinho assaz encaralhado de faz-favor-de-desculpar, queria dizer sofrível, mais ou menos, menos mal, podia ser pior, não há-de ser nada. Isto é: bagatela, aqui, queria dizer exactamente o mesmo que... calar. Mas um bocadinho para pior.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Eles chamam-lhe cumbre

Guerra da Restauração
Quando a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha terminou e pediu a continha, em 1668, foi deveras porreiro. Os espanhóis começaram a vir comer bacalhau a Valença e os portugueses passaram a ir às bandejas de marisco a Vigo. Foi bom para o negócio e, entre mortos e feridos, salvaram-se consideráveis estabelecimentos.

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, consegui credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tinha sido superiormente requisitado para todos os efeitos. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de entalar, porém, sem me deixarem sequer abrir a boca, mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar larachas uns aos outros, chistes de espanhóis e portugueses, "Valevale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras, Aljubarrota, na nossa irmandade, é como se fosse uma anécdota.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma certa solenidade à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar no ofício e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estais recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam generosamente as pernoitas aos seus jornalistas, e eu resolvi dormir em Fafe. Jantei, fora de horas, no restaurante do Café Académico e dormi em casa da minha mãe. No segundo dia, almocei no Fernando da Sede. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estais a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e foi dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito e era a coisa mais natural do mundo.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, câmaras, holofotes e microfones tapando-me a visão, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. Que era nada ou quase nada. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro ainda mais. O Adélio Santos morreu há uma dúzia de anos e o jornalismo consta que também.

Enfim. A 35.ª cimeira ibérica foi no ano passado, em Faro, e a próxima, se Deus quiser, há-se realizar-se em Espanha, não sei quando. E isto passa por ser uma história interminável. Ao fim de tantos anos e encontros, cá e lá, alternadamente, portugueses e espanhóis não há maneira de chegarem a acordo sobre o essencial da coisa: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como é evidente, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, vá-se lá saber porquê...

domingo, 7 de setembro de 2025

Cubillas e, talvez, cação de cebolada

Mas onde é que eu o deixei?...
Era um avançado muito distraído. No momento supremo do remate - dizem os especialistas -, andava sempre à procura do pé esquerdo.

Eu vi Cubillas. Teófilo Juan Cubillas Arizaga, o prodígio peruano, vi-o com os meus próprios olhos, vi-o da minha cor, uma só, azul e branco, vi-o pequeno, delicado, elegante, inesperado, repentista, amiúde sublime, fulminante, Lionel Messi antes de ser inventado, uma brisa ligeira e redolente deslizando quase invisível sobre o relvado. Cubillas era um sorriso em andamento. Sim, um sorriso - genuíno, dir-se-ia que infantil, maroto. Cubillas e a bola estavam-se prometidos desde o princípio dos tempos, sabiam-se de cor e salteado, eram um em dois perfeito, acto de amor consumado, puro gozo, prova viva da bondade dos deuses.
Eu vi Cubillas. Uma vez, porque os fenómenos são assim, não dão para mais. Vi-o aqui à porta de casa, em Guimarães, fomos de Fafe o tio Américo, o tio Zé e eu, de propósito para ver Cubillas, com merenda aprazada talvez no Batista da Cruz d'Argola, ou não sei se noutro estaminé qualquer ali da zona que tinha um cação de cebolada que era realmente uma especialidade, e fiquei com essa memória. Íamos com fé. Podia ser que também víssemos o "nosso" Quim na baliza do FC Porto, mas foi Tibi quem tomou conta, se bem me lembro desse mês de Março de 1974, ainda o cravo estava por estrear. O estádio rebentava pelas costuras, deu empate zero-zero e Cubillas falhou um penálti, mas isso o que é que importa?
Tem piada, foi com o Vitória que, entre 1975 e 1976, eu aprendi o futebol de primeira divisão. Os quase dois anos no Liceu de Guimarães deram-me para isso: a meio da semana, ia comprar o bilhete numa loja ali perto do Toural, creio que na Rua de Santo António, e no domingo, logo a seguir ao almoço, punha-me à boleia, em Fafe, encostado à Farmácia Sousa Alves, como nos dias em que ia vadiar para as aulas. O regresso a casa, depois do jogo, novamente de dedo polegar esticado, era quando Deus quisesse. Mas naquele dia estava muito bem acompanhado, com transporte garantido e horas tomadas.
É. Eu vi jogar Teófilo "Nene" Cubillas! Assim, com ponto de admiração e tudo. E explico a excitação. Sou esquisito. Em toda a minha vida, fui, por vontade própria e em meu perfeito juízo, a somente quatro concertos: Andràs Schiff (com as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach), Paco de Lucía, Rolling Stones e Bob Dylan. Já tenho idade para fazer balanços, e faço-os, antes que tenha idade para não os fazer. Schiff, Lucía, Stones e Dylan foram-me acontecimentos únicos, marcantes, epifanias, catarses, itens que eu coloco na coluna mal preenchida dos meus "momentos verdadeiramente extraordinários". Schiff, Lucía, Stones, Dylan. E Cubillas. Para mim, Cubillas está-lhes ao nível. Cubillas e, sou franco, talvez também o cação de cebolada...

sábado, 6 de setembro de 2025

O meu primeiro casamento

Ele era um tipo com princípios e valores, sabia das suas obrigações. Casou. Casou pelo civil e casou pela Igreja. Por amor é que não!

O meu primeiro casamento foi o casamento do meu padrinho e tio Américo com a minha querida tia Laura. Vieram convidados do Porto e eu andei de "pão de forma" em forma de Volkswagen, numa épica viagem entre a Igreja Nova e os Bombeiros antigos, logo ali no meio dos palacetes, talvez nem 100 metros sempre em linha recta, e ainda assim enjoei. A fotografia "de conjunto" foi tirada a preto e branco nas escadas do Hospital, talvez esteja a inventar, e o banquete teve lugar no velho salão da Bomba, eu metido numa mesinha à parte para as crianças, logo depois da grande porta dupla de entrada, e portanto não gostei. O meu segundo casamento, eu já rapaz, foi o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha querida tia Lena. Vieram convidados do Porto, evidentemente, comeu-se no famoso Restaurante Jordão, em Guimarães, fui apresentado aos agriões em salada, houve discursos e não me lembro de como é que fomos para lá, se calhar a minha mãe teve de alugar um carro, serviço que decerto ainda hoje, mais de 50 anos depois, andará a pagar a prestações. O meu terceiro casamento foi o casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Não tenho ideia se veio alguém do Porto, mas provavelmente veio, porque fazia parte ou então era mania, tara de família, isso de vir alguém do Porto, e aquilo fazia-me espécie. "Os do Porto" não era por acaso que eram "os do Porto". Ser-se "do Porto" era um merecimento, uma espécie de doutoramento ou condecoração, estatuto, posição, em todo o caso. Eu ia para o Porto de comboio, automotora, vá lá, de cu tremido e geralmente a dormir, só para namorar, essa é que é a verdade, nunca fiz nada na vida, mas eles não, tinham ido para o Porto a pulso, mais difícil ainda do que ir para a França a salto, "estavam muito bem", regressavam para as festividades da terra, de fato e prendas, magnatas e um bagaço, ninguém sabia o que é que eles realmente faziam no Porto, se é que faziam alguma coisa, e se eventualmente não seria em São Mamede de Infesta ou em Rito Tinto, para não ir mais longe, mas, para todos os efeitos, eram "os do Porto", parentes desconhecidos e habitualmente desnecessários, porém com direito a vénias e mordomias sempre que se apresentassem, e eu, quer-se dizer, afinava com tanto fingimento. Tornando à Nanda e ao Álvaro, que é o que mais importa, a cerimónia religiosa creio que se passou na Capela de Santo Ovídio, que era moda naquele tempo, e o almoço lembro-me que foi muito bem servido no restaurante do Café Académico, tudo em Fafe. Depois dos meus três primeiros casamentos, tive evidentemente outros casamentos, inclusive o meu, que ainda hoje vigora, não é para me gabar. O meu casamento realizou-se por acaso no Porto e vieram convidados de Fafe. Muitos. A maioria qualificada. Não foi vingança, mas soube bem.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Em balão previamente aquecido

Ai rapariga, rapariga, rapariga
A jovem mãe aproveitou o inesperado bocanho da manhã farrusca e incerta para descer até ao passeio da praia com a filhinha pela mão. Que bonitas, as duas, tão frescas e mimosas! A jovem mãe apontou o areal e disse naquela maneira pateta de falar às criancinhas, como se as criancinhas fossem atrasadas mentais ou, vá lá, cãezinhos de estimação:
- Ei!, tantas pombinhas, tantas pombinhas! Eeeiii! Ó pombinhas, ó pombinhas!...
A menina, pouco convencida porém obediente, correspondeu com um económico e timorato:
- Ei.
Tinha razão a pequena. Já suficientemente grande para saber a verdade das coisas. Eram gaivotas.

Moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado. Na varanda de casa, sem marquise, depois de um jantar mais coisa e tal, eu gostava de fumar a minha cachimbada e beber um fundinho de CRF em balão previamente aquecido. "Em balão previamente aquecido". Não sei quem foi o génio que inventou a frase e o conceito, mas, garanto-nos, sabe quase tão bem dizê-lo como bebê-lo. Eu parece-me que já trouxe a ideia de Fafe, e lembro-me que quem gostava também de repetir amiúde a curiosa expressão era o Silva da Sargaça, ou Chico Silva, velho camarada de merendas e desconversas líquidas, exímio praticante do falar antigo e excelentíssimo músico da Orquestra Sinfónica do Porto e da nossa Banda de Revelhe.
E balão, para mim, é mesmo balão. Não um balãozinho ou um balo. É balão, bojudo e de boca larga, tipo Alberto João Jardim nos seus bons velhos tempos. O conteúdo até poderia ser pouco, e era, um dedo apenas e medido pela minha mulher, mas o continente eu queria-o pela medida grande.
Moro em frente ao mar, dizia eu, e tenho uma vizinha que dá de comer às gaivotas. A sério, dá de comer aos gatos e às gaivotas. E as gaivotas, que vêm ao cheiro, não me largam a varanda. De dia e de noite. Todos os dias e todas as noites. Creio que ainda ninguém explicou a estas gajas que só me deveriam bater à porta em caso de tempestade marítima, como manda o sapiente provérbio popular.
Ora, a gaivota é um bicho que, como a maioria dos portugueses, come toda a espécie de porcarias e, padecendo de intestino fraco, anda quase sempre de soltura. Resultado: quando a gaivota abre a cloaca, sem aviso nem circunscrição, chovem cagadas de alto lá com elas. Quem tinha capacete, tinha, quem não tinha, que tivesse. Isto é científico.
Portanto, moro praticamente em frente ao mar e estava na varanda à conversa com o CRF em balão previamente aquecido, deitando um olho, de quando em vez, lá dentro na sala, a um desenxabido Gil Vicente-Olhanense, e isto é que eu ainda não tinha dito. Foi num desses momentos, no exacto momento em que eu disponibilizei o meu olho esquerdo para mais um fora-de-jogo mal assinalado, ainda por cima, que o estepor da gaivota do costume - já te conheço a fronha, ó cagona! - resolveu aliviar lastro, com uma pontaria tamanha que me acertou em cheio no indefeso balão de boca larga.
Antes de ficar realmente incomodado, pensei: isto é uma metáfora do pobre país que somos, todos nos defecam em cima, até as gaivotas, e pela boca morre o peixe. Bebi um golo, e não era metáfora nenhuma. Se quereis saber a verdade, e com vossa licença, era mesmo merda.

Entretanto o Olhanense desceu de divisão, o Gil Vicente também, mas tornou a subir, foi inventado o VAR, que é outra grande chostra, eu deixei de beber CRF e de fumar, tenho em casa 25 cachimbos inúteis e belos que são um bom princípio de museu ou talvez de um centro interpretativo, ainda estou à espera de um subsídio europeu, a Banda de Revelhe quase rebentavam com ela, as gaivotas continuam a cagar-nos em cima e os políticos, de uma forma geral, também. E nós por cá na vidinha e olhando o mar, a ver navios e estupidamente sem capacete.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O casal Carter e o Casal Garcia

Homem de famílias
O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

Os americanos têm muito orgulho no casal Carter, Jimmy e Rosalynn, que estiveram casados durante 77 anos. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter protagonizaram o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Os americanos nunca vieram a Fafe, ao Peludo, no tempo do Sr. Avelino, o nosso "Hoss". Eles não sabem que, em Portugal, temos o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já lá vão 86 anos...

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A moda ou a modinha

A moda pode ser fatal
Os andarilhos estão na moda. E as bicicletas, para outro tipo de clientela. Os andarilhos, as bicicletas e as trotinetas. As cenas de pancadaria, facadas, tiros e mortes entre jovens bandidos, por nada ou por quase nada, também. Sobretudo facadas. A malta nova anda agora toda por aí com naifas, como quem usa boné ou sapatilhas de marca. É. As televisões de faca e alguidar tratam da propaganda, montam o espectáculo, ensinam como se faz. A moda tem muito que se lhe diga. E pode ser fatal.

Aquele restinho de caldo que se deixava no fundo da malga, a que se juntava broa migada e, amiúde, uma pinga de vinho tinto, e que sabia tão bem no fim da refeição, como se fosse um acrescento de fartura no tempo da fome, era a "moda" ou a "modinha". E se o caldo fosse de nabos, então é que era em cheio. Dicionários e enciclopédias chamam-lhe "moado", substantivo masculino apresentado como regionalismo de origem incerta. Acredito que sim, mas em Fafe não. Em Fafe, era a "moda". Ou "modinha", como melhor se dizia no nosso carinhoso falar antigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Que perfeita ela era, a ignorância

Pro Bono
Acabou o curso, disseram-lhe que, para começar, ia trabalhar pro bono e ele rebentou de alegria. "Sou fã n.º 1 dos U2", exultou, excitadíssimo.

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu batalhava no Porto e o jornal era mandado a partir de Lisboa. Uma vez, o assunto devia ser música e pedi a ajuda, a opinião, do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe lisboeta, especialista em Big Brother. "Luís quê? Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."

Desencantei o Tozé Brito, noutra ocasião, para outro trabalho de Hércules, mas o meu chefe, outro, jornalista alegadamente encartado, também não fazia a mínima ideia de quem eles fossem, Hércules, antes dos desenhos animados e do cinema, e o Tozé Brito propriamente dito: "Esse tipo jogou onde? E o que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios da capital. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.

Outra vez, havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartunes e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento que eu pensava de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartunista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. E eu não fui.
O Sam, Samuel Azavey Torres de Carvalho (1924-1993), figura pública, nacional e internacional, nome imenso, mais do jornalismo sozinho e a dormir do que nós todos juntos e eventualmente acordados, tinha morrido já lá ia para aí uma década, mas eu preferi guardar segredo para os meus chefes, para não lhes dar desgosto, coitados. Belos tempos, aqueles. Que perfeita ela era, a ignorância!

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

No Minho, mais perto do céu

Livro das lamentações
O dinheiro não cai do céu. E é pena.

O Minho cheira a Natal, sabeis? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa aqui é o Minho, e quanto mais alto melhor. Mais dois ou três meses, e o Minho começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao frio e fechar os olhos. E eu abro e eu largo e eu fecho. A janela, a cabeça e os olhos, respectivamente. Sou pendura, graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
Ando sempre de nariz no ar, tenho talvez um lado canino que desconhecia e já começo a admitir. Farejo. Os cheiros interessam-me particularmente, orientam-me, transportam-me aos sítios. O cheiro a especiarias leva-me a Angra do Heroísmo, Óbidos cheira a chocolate, Fundão à flor da cerejeira e Vila Nova de Foz Côa às amendoeiras em flor. Fafe cheirava a sabão amarelo e Matosinhos cheira mal.
Que depressa vão os dias! Tinha razão o nosso bom padre Fraga: ainda há pouco foi Janeiro, passámos agora Agosto e já estamos no fim do ano, meus meninos. Estamos no Natal. Estamos sempre no Natal.
É. A memória também vai ao cheiro: a querida Bó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa esbotenada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, ainda assim, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, anda muito mal informado ou está a pensar nos  fogos de Verão. 
Então. Vamos lá, que são que horas! De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem da terra suada, letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados uns aos outros, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Medelo, Marinhão, Moreira de Rei, Várzea Cova, Passos logo ali em baixo, tecnicamente já em Cabeceiras de Basto, devagar se vai ao longe. Assim vamos, a Mi e eu, para não perdermos pitada. Tive tanta sorte: a minha mulher converteu-se ao minhotismo, já há muito, andamos sempre os dois ao mesmo. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Devia ser proibido alguém morrer sem ter uma mão dada e um céu assim para olhar. Olhar... e só então partir.